sexta-feira, 29 de abril de 2022

Três poemas de Li Bai

 

Li Bai in Stroll, por Liang Kai

    O precioso livro Antologia da Poesia Clássica Chinesa, Dinastia Tang foi publicado em 2012 pela Editora Unesp com o apoio do Instituto Confúcio. Trata-se do trabalho de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, que verteram diretamente do idioma original mais de duzentos poemas do período áureo da literatura chinesa, enriquecendo-nos as estantes com uma linda coleção bilíngue de pérolas.
    Li Bai (701-762) é considerado, ao lado de Du Fu, o maior poeta chinês. A seu respeito, o livro diz: “Dos cerca de mil poemas seus que permaneceram, grande parte são baladas em gêneros tradicionais, de maior espontaneidade e liberalidade formal. Características de sua poesia são a grandiosidade, a construção de universos fantásticos, o desenvolvimento do imaginário taoísta de divindades e seres imortais. (...) Inspirava-se no vinho para a composição de uma poesia celestial, marcada pela transcendência, capaz, contudo, de referir-se também aos fatos históricos”. Seus temas favoritos parecem ser os próprios da boa poesia: a solitude, o tempo, a natureza, o universo. E junto deles, às vezes, a alegria de embriagar-se com vinhos.
    A seguir, três breves fragmentos de sua obra.


Bebendo sozinho sob a lua

Em meio às flores a jarra de vinho
virar sozinho sem mais companhia
Erguer o copo à lua reluzente
e mais a sombra agora somos três
Conquanto a lua não saiba beber
e em vão a sombra me devolva o corpo
por um momento seguem lua e sombra
Todo o prazer é só uma primavera
Eu canto e a lua flana tremulando
Danço e se soma a sombra redobrando-se
Despertos dividimos alegria
depois de ébrios cada qual um caminho
Até não mais, desfeitos nós se apartam
rever-se um dia pela Via Láctea


Canto antigo (Viver, ao viajante, uma passagem...)

Viver: ao viajante, uma passagem,
morrer: o passageiro, que retorna.
Céu, terra, o mundo: este motel de estrada
que há dez mil anos junta o mesmo pó.
Coelho em jade à lua entre elixires
e a árvore Fusang desfeita em cinzas.
Dos brancos ossos nada mais se diz
e à primavera, verdes os pinheiros.
Os dias vêm e vão, virão suspiros:
De nada vale a glória vã, vazia.


Canto antigo (nasce a manhã no mar...)

nasce a manhã no mar um lago púrpura
a aurora enverga nuvens de cinabre
a mão apanha um ramo à árvore nova
afaga o oeste o luminoso sol
flutua a nuvem às oito extremidades
o rosto jade marca-se em mil rugas
alegre alegre entrar no sem-origem
saudar a luz ao soberano brilho
chamado a entrar aos mais puros recessos
beber do jade em cálice esmeralda
mil anos permanece o alto banquete
por que voltar para a esquecida terra
sempre elevar-se ao vento que se afasta
passar além do céu seguir vagar
 
(Li Bai et al. Antologia da Poesia Clássica Chinesa, Dinastia Tang
Traduzido por Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao. São Paulo: Editora Unesp, 2012, págs. 79, 95 e 97).

domingo, 24 de abril de 2022

J. D. Salinger: o guardador de infâncias

 


    Nas páginas finais de The Catcher in the Rye, obra-prima de J.D. Salinger (1919-2010), Holden Caulfield, dialogando com sua irmã caçula, tece uma belíssima alegoria: milhares de crianças brincam sobre um campo de centeio rodeado por um penhasco, e Caulfield deve protegê-las de cair dele. O campo de centeio representa a feliz infância; o penhasco, seu fim.
    Caulfield acredita que, ao contrário da gente crescida, as crianças são simples e impolutas e deseja manter viva essa pureza singela. O apanhador no campo de centeio, então, deve salvá-las da realidade ríspida que as definhará com o passar do tempo. Como se fosse, afinal, um guardador de infâncias.

(…) I was thinking about something else – something crazy. “You know what I’d like to be?” I said. “You know what I’d like to be? I mean if I had my goddam choice?”

“What? Stop swearing.”

“You know that song ‘If a body catch a body comin’ through the rye” I’d like –“

“It’s ‘if a body meet a body coming through the rye’!” old Phoebe said. “It’s a poem by Robert Burns.”

“I know it’s a poem by Robert Burns.”

She was right, though. It is “If a body meet a body coming through the rye.” I didn’t know it then, though.

          “I thought it was ‘If a body catch a body’”. I said. “Anyway, I keep picturing all these little kids playing some game in this big field of rye and all. Thousands of little kids, and nobody’s around – nobody big, I mean – except me. And I’m standing on the edge of some crazy cliff. What I have to do, I have to catch everybody if they start to go over the cliff – I mean if they're running and they don't look where they’re going I have to come out from somewhere and catch them. That's all I do all day. I'd just be the catcher in the rye and all. I know it's crazy, but that's the only thing I'd really like to be.”

 

“(…) Eu tava pensando em outra coisa, uma coisa doida. Cê sabe o quê que eu queria ser? – perguntei pra ela. – Sabe o que eu queria ser? Tipo, se eu pudesse fazer a merda da escolha?

– O quê? Para de xingar.

– Cê conhece aquela melodia: ‘Se alguém agarra alguém por entre o campo de centeio’? Eu queria...

– A letra é ‘Se alguém encontra alguém por entre o campo de centeio’! – ela disse. – É um poema do Robert Burns.

Eu sei que é um poema do Robert Burns.

Mas ela tava certa. Realmente é ‘Se alguém encontra alguém por entre o campo de centeio’. Mas eu não sabia direito.

Pensei que era ‘Se alguém agarra alguém’ – eu disse. – De qualquer jeito, fico imaginando essas crianças brincando de alguma coisa num campo gigante de centeio e tudo. Milhares de crianças, e ninguém por ali – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício doido. O quê que eu tenho que fazer? Tenho que agarrar todo o mundo que cair do precipício. Quer dizer, se uma criança começar a correr sem olhar pra onde tá indo, eu tenho que aparecer de algum lugar e agarrar ela. É só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é doideira, mas é a única coisa que eu queria fazer.”



(SALINGER, J.D. The Catcher in the Rye.
Boston: Little, Brown and Company, 1991, pág. 93).

terça-feira, 19 de abril de 2022

Três poemas de Dante Milano

 

Retrato de Dante Milano (Candido Portinari, 1931)

    Ivan Junqueira, poeta de cuja lírica gosto bastante, diz o seguinte a respeito de Dante Milano (1899-1991): “Embora egresso do Modernismo de 1922, Dante Milano é, na verdade, anterior ao movimento modernista, do qual participou à distância e ao qual, efetivamente, jamais se filiou nem durante nem depois da festiva e turbulenta década de 1920. Não há dúvida de que apoiou o movimento, pois nele via, como todos os artistas da época, um caminho de libertação estética. A rigor, entretanto, o Modernismo pouco ou nada teria a oferecer-lhe em termos de subsídio literário ou de plataforma estética. E mais: à época da agitação modernista, o poeta Dante Milano já estava pronto, infenso, portanto, a quaisquer aquisições mais profundas e radicais do ponto de vista formal, ainda que aberto e sensível às conquistas expressionais do movimento.
    Milano, de fato, mantém uma métrica mais adequada ao seu estilo pessoal; é provável, todavia, que a proximidade dos escritores modernistas lhe tenha inspirado uma linguagem clara, límpida e, às vezes, amiga do barulho das vanguardas. Ainda que admirada por figuras como Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda e Carlos Drummond de Andrade, sua criação, tristemente, permanece pouco conhecida.
    A seguir, três de seus poemas que acho particularmente belos.


V

Na treva mais gelada, na brancura
Mais cega e morta, a vida ainda transluz.
Até de dentro de uma sepultura
Brota um soluço trêmulo de luz,
A luz que sua, a luz que desfigura
As pétalas pendidas nos pauis,
A espuma nos penhascos, fria e pura,
As chamas em seus ápices azuis.
Desalentos, angústias e canseiras
Tornam maior, mais tenebroso o olhar
Que lembra o olhar dos mortos: só olheiras.
São existências que se dão inteiras
E sofrem, como o vento, como o mar,
Como todas as coisas verdadeiras.


TERCETOS

Eu sou um rio, a água fria de um rio.
Profundo, cabe em mim todo o vazio,
Um reflexo me causa um calafrio.

Sou uma pedra de cara escalavrada,
Uma testa que pensa, e sonda o nada,
Uma face que sonha, ensimesmada.

Sou como o vento, rápido e violento,
Choro, mas não se entende o meu lamento.
Passo e esqueço meu próprio sofrimento.

Sou a estrela que à noite se revela,
O farol que vê longe, o olhar que vela,
O coração aceso, a triste vela.

Sou um homem culpado de ser homem,
Corpo ardendo em desejos que o consomem,
Alma feita de sonhos que se somem.

Sou um poeta. Percebo o que é ser poeta
Ao ver na noite quieta a estrela inquieta:
Significação grande, mas secreta.


A PARTIDA

Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.

Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.

Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.

Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.


(MILANO, Dante. Melhores Poemas de Dante Milano.
São Paulo: Global Editora, 2008, págs. 50, 59, 64).


quinta-feira, 14 de abril de 2022

Salvatore Quasimodo: um homem só, um só inferno



    Que alegoria o eu lírico do siciliano Salvatore Quasimodo (1901-1968) pretende implicar quando se descreve como um náufrago? Excesso de sofrimento? Calor de chamas internas? Tempestades de sentimentos incomunicáveis? Creio que não poderia ser senão a do homem que, filho de tempos duros, acaba de experimentar uma guerra mundial e já entra em outra – no decurso das quais se perpetram os mais vis crimes, violações e morticínios.
    Em Náufrago (que traduzo do inglês, porque, tristemente, não possuo italiano), de 1936, notamos as características principais do hermetismo poético: a voz poética, ainda que pareça buscar algum conforto espiritual, vale-se de imagens, simbolismos e metáforas para confessar-se perdida, desamparada, inquieta.


In Your Light I Am Wrecked

I am born in your shipwrecking light,
evening of limpid waters.

The air burns comforted
with serene leaves.

Torn up from the living
I am makeshift heart,
a no-man’s-land.

Your terrible gift of
words, Lord, I am
doing my best to repay.

Waken me from the dead:
everyone has his land,
his woman.

You have looked within me
in the darkness of my entrails:
no one holds in his heart
despair like mine.

I am a man alone,
a single hell.

––

Náufrago

Nasci no naufrágio de tua luz,
entardecer de águas límpidas.

O ar queima tranquilo
com folhas serenas.

Arrancado dos vivos,
sou um coração precário,
uma terra-de-ninguém.

Teu terrível dom de
palavras, Senhor, eu
faço o melhor para retribuir.

Desperta-me dos mortos:
todos têm sua terra,
sua mulher.

Olhaste dentro de mim,
no abismo das minhas entranhas:
ninguém guarda no coração
desespero como o meu.

Eu sou um homem só,
um só inferno.


(QUASIMODO, Salvatore. Complete Poems
Traduzido por BEVAN, Jack. Carcanet Classics, 2021).

domingo, 10 de abril de 2022

Um poema de Ko Un

 


    Alguns anos depois de conhecê-lo em 1990, Allen Ginsberg chamou ao sul-coreano Ko Un (1933-) “um poeta magnífico, uma combinação de sábio budista, apaixonado libertário e historiador naturalista”.
    Merecido elogio. Diz-se que Ko Un, prolífico, publicou mais de uma centena de livros e manifestou uma imensa diversidade em sua lírica: poemas rápidos e sugestivos, poemas longos e robustos, poemas-piada, poemas furiosos, poemas de amor, poemas explicitamente políticos... Seus versos exibem uma fome de falar sobre tudo aquilo de que é possível falar, e quer parecer-nos que o bardo busca, assim, tornar-se uma espécie de “cidadão do mundo”.
    A seguir, traduzo do inglês o seu poema É (It’s), publicado em 2002 e presente na antologia First Person Sorrowful.


É

É um coração pulsante,
lágrimas pingando do cano de uma arma.

É
subtrair em vez de adicionar,
dividir em vez de multiplicar.

É
escutar.

É
uma tigela de arroz.

É
raízes do subsolo
não precisando se preocupar com as folhas de cima.

É
o assobio infantil de alguém.

É toda a forma de vida,
cada vida individual
não sujeita a outras vidas.

É
a visão de bois arando em dias passados.
Ai!
jugos milenares dos bois.

É
um pai morrendo antes do filho.

É
uma língua materna.

É
o sangue de uma pessoa esquentando o sangue de outra pessoa.

É
uma mãe para quem o choro de seu bebê é tudo no mundo.

É
um arquipélago.

É uma pessoa sendo humana para outro humano,
uma pessoa sendo natureza para a Natureza.

É
eu mesmo sendo finalmente abolido.

Ah, Paz!


––


It’s

It’s a heart throbbing,
tears dripping from the muzzle of a gun.

It’s
subtracting rather than adding up,
dividing rather than multiplying.

It’s
listening.

It’s
a bowl of rice.

It’s
underground roots
not having to worry about the leaves up above.

It’s
someone’s childish fluting.

It’s every kind of life,
each individual life
not subject to other lives.

It’s
the sight of harnessed oxen plowing fields in days gone by.
Alas!
oxen’s millennial yokes.

It’s
a father dying ahead of his son.

It’s
a mother tongue.

It’s
one person’s blood warming another person’s blood.

It’s
a mother for whom her baby’s crying is all.

It’s
an archipelago.

It’s a person being a human for another human being,
a person being nature for Nature.

It’s
myself being finally abolished.

Ah, Peace!


(Ko Un. First Person Sorrowful. Traduzido por Anthony of Taizé
e Lee Sang-Wha. Bloodaxe Books, 2012).

quarta-feira, 6 de abril de 2022

O Poder Libertador do Passado

 


    Escreve o classicista Jasper Griffin:

    They worshipped many gods, they owned slaves, they had different ideas about sex. To see that such things can be true of people whom in some ways we find intelligible and recognizable can help to deliver us from the tyranny of the present, from the assumption that our own habits of action and thought are really inescapable, and from the idea that there are no alternatives. That is the liberating power of the past.
    (“Eles adoravam vários deuses, possuíam escravos, tinham diferentes ideias sobre sexo. Ver que tais coisas podem ser verdadeiras a respeito de pessoas que em partes consideramos inteligíveis e reconhecíveis pode ajudar a livrar-nos da tirania do presente, da presunção de que nossos próprios hábitos de ação e pensamento são realmente inescapáveis e da ideia de que não há alternativas. Esse é o poder libertador do passado.”)
    Belo.



(BOARDMAN, John; GRIFFIN, Jasper; MURRAY, Oswyn.
The Oxford History of Greece and the Hellenistic World. New York: Oxford University Press, 2001, p. 8).


sábado, 2 de abril de 2022

Tomas Tranströmer: Allegro

 


   Muitas vezes, Tomas Tranströmer (1931-2015) pode parecer-nos um poeta alienado. Trata-se, contudo, de uma impressão equivocada: seus versos consistem em tranquilas afirmações com poucas palavras, mas também numa forma implícita de resistência ao poder e à apatia dos tempos modernos. O poema a seguir, de 1962, revela-nos a particular habilidade de extrair grandeza das cenas simples e cotidianas, simultaneamente atuando como um tributo à música, arte amada por Tranströmer, e como uma maneira de mostrar-nos que, até durante os períodos escuros da vida, conseguimos encontrar alento, calma e o sentimento de liberdade.


ALLEGRO

Eu toco Haydn após um dia negro
e sinto um calor tranquilo nas mãos.

As notas se dispõem. Marteladas gentis.
Os ecos são verdes, vivos e calmos.

A música diz que a liberdade existe
e alguém não paga as taxas do imperador.

Enfio as mãos nos meus Haydn-bolsos
e imito uma pessoa serena sobre o mundo.

Alço a Haydn-bandeira – a mensagem é:
“Não nos rendemos. Mas queremos paz”.

A música é uma casa de vidro no declive
aonde as pedras voam, as pedras rolam.

E as pedras rolam direto para dentro da casa,
porém cada vidraça permanece intacta.

––

ALLEGRO

I play Haydn after a black day
and feel a simple warmth in my hands.

The keys are willing. Soft hammers strike.
The resonance green, lively and calm.

The music says freedom exists
and someone doesn’t pay the emperor tax.

I push down my hands in my Haydnpockets
and imitate a person looking on the world calmly.

I hoist the Haydnflag – it signifies:
“We don’t give in. But want peace.”

The music is a glass-house on the slope
where the stones fly, the stones roll.

And the stones roll right through
but each pane stays whole.


(TRANSTRÖMER, Tomas. The Great Enigma: New Collected Poems.
Traduzido por FULTON, Robin. Bloodaxe Books, 2006, pág. 96).




Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...