quinta-feira, 14 de abril de 2022

Salvatore Quasimodo: um homem só, um só inferno



    Que alegoria o eu lírico do siciliano Salvatore Quasimodo (1901-1968) pretende implicar quando se descreve como um náufrago? Excesso de sofrimento? Calor de chamas internas? Tempestades de sentimentos incomunicáveis? Creio que não poderia ser senão a do homem que, filho de tempos duros, acaba de experimentar uma guerra mundial e já entra em outra – no decurso das quais se perpetram os mais vis crimes, violações e morticínios.
    Em Náufrago (que traduzo do inglês, porque, tristemente, não possuo italiano), de 1936, notamos as características principais do hermetismo poético: a voz poética, ainda que pareça buscar algum conforto espiritual, vale-se de imagens, simbolismos e metáforas para confessar-se perdida, desamparada, inquieta.


In Your Light I Am Wrecked

I am born in your shipwrecking light,
evening of limpid waters.

The air burns comforted
with serene leaves.

Torn up from the living
I am makeshift heart,
a no-man’s-land.

Your terrible gift of
words, Lord, I am
doing my best to repay.

Waken me from the dead:
everyone has his land,
his woman.

You have looked within me
in the darkness of my entrails:
no one holds in his heart
despair like mine.

I am a man alone,
a single hell.

––

Náufrago

Nasci no naufrágio de tua luz,
entardecer de águas límpidas.

O ar queima tranquilo
com folhas serenas.

Arrancado dos vivos,
sou um coração precário,
uma terra-de-ninguém.

Teu terrível dom de
palavras, Senhor, eu
faço o melhor para retribuir.

Desperta-me dos mortos:
todos têm sua terra,
sua mulher.

Olhaste dentro de mim,
no abismo das minhas entranhas:
ninguém guarda no coração
desespero como o meu.

Eu sou um homem só,
um só inferno.


(QUASIMODO, Salvatore. Complete Poems
Traduzido por BEVAN, Jack. Carcanet Classics, 2021).

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