terça-feira, 19 de abril de 2022

Três poemas de Dante Milano

 

Retrato de Dante Milano (Candido Portinari, 1931)

    Ivan Junqueira, poeta de cuja lírica gosto bastante, diz o seguinte a respeito de Dante Milano (1899-1991): “Embora egresso do Modernismo de 1922, Dante Milano é, na verdade, anterior ao movimento modernista, do qual participou à distância e ao qual, efetivamente, jamais se filiou nem durante nem depois da festiva e turbulenta década de 1920. Não há dúvida de que apoiou o movimento, pois nele via, como todos os artistas da época, um caminho de libertação estética. A rigor, entretanto, o Modernismo pouco ou nada teria a oferecer-lhe em termos de subsídio literário ou de plataforma estética. E mais: à época da agitação modernista, o poeta Dante Milano já estava pronto, infenso, portanto, a quaisquer aquisições mais profundas e radicais do ponto de vista formal, ainda que aberto e sensível às conquistas expressionais do movimento.
    Milano, de fato, mantém uma métrica mais adequada ao seu estilo pessoal; é provável, todavia, que a proximidade dos escritores modernistas lhe tenha inspirado uma linguagem clara, límpida e, às vezes, amiga do barulho das vanguardas. Ainda que admirada por figuras como Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda e Carlos Drummond de Andrade, sua criação, tristemente, permanece pouco conhecida.
    A seguir, três de seus poemas que acho particularmente belos.


V

Na treva mais gelada, na brancura
Mais cega e morta, a vida ainda transluz.
Até de dentro de uma sepultura
Brota um soluço trêmulo de luz,
A luz que sua, a luz que desfigura
As pétalas pendidas nos pauis,
A espuma nos penhascos, fria e pura,
As chamas em seus ápices azuis.
Desalentos, angústias e canseiras
Tornam maior, mais tenebroso o olhar
Que lembra o olhar dos mortos: só olheiras.
São existências que se dão inteiras
E sofrem, como o vento, como o mar,
Como todas as coisas verdadeiras.


TERCETOS

Eu sou um rio, a água fria de um rio.
Profundo, cabe em mim todo o vazio,
Um reflexo me causa um calafrio.

Sou uma pedra de cara escalavrada,
Uma testa que pensa, e sonda o nada,
Uma face que sonha, ensimesmada.

Sou como o vento, rápido e violento,
Choro, mas não se entende o meu lamento.
Passo e esqueço meu próprio sofrimento.

Sou a estrela que à noite se revela,
O farol que vê longe, o olhar que vela,
O coração aceso, a triste vela.

Sou um homem culpado de ser homem,
Corpo ardendo em desejos que o consomem,
Alma feita de sonhos que se somem.

Sou um poeta. Percebo o que é ser poeta
Ao ver na noite quieta a estrela inquieta:
Significação grande, mas secreta.


A PARTIDA

Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.

Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.

Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.

Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.


(MILANO, Dante. Melhores Poemas de Dante Milano.
São Paulo: Global Editora, 2008, págs. 50, 59, 64).


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