quarta-feira, 29 de junho de 2022

O admirável fracasso

 



   Em sua obra, John Steinbeck (1902-1968) costuma unir lindas reflexões sobre a fraternidade humana à crueldade de um mundo que explora as fraquezas dos homens, que desperta e estimula a ganância e a mesquinhez em nós. Talvez a maior tragédia de seus escritos resida na morte do grande Sonho Americano, denunciado como aquilo que ele realmente é: apenas um sonho.
    Eis um fragmento de Cannery Row, de 1945:

  “It has always seemed strange to me”, said Doc. “The things we admire in men, kindness and generosity, openness, honesty, understanding and feeling are the concomitants of failure in our system. And those traits we detest, sharpness, greed, acquisitiveness, meanness, egotism and self-interest are the traits of success. And while men admire the quality of the first they love the produce of the second.”

   – Sempre me pareceu estranho – disse Doc. – As coisas que admiramos nos homens, gentileza e generosidade, franqueza, honestidade, compreensão e sentimentos, são coincidentes com o fracasso no nosso sistema. E as características que detestamos, aspereza, ganância, cobiça, mesquinhez, egoísmo e vaidade, são os atributos do sucesso. E, enquanto os homens admiram as qualidades daquelas, eles amam os produtos destas.


(Steinbeck, John. The Short Novels of John Steinbeck.
New York: Penguin Books, 2009, pág. 505)

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Jorge L. Borges: Os justos

 


    No Livro dos Seres Imaginários, Jorge Luis Borges (1899-1986) diz: “Há na terra, e sempre houve, 36 homens íntegros cuja missão é justificar o mundo perante Deus. São os Lamed Wufniks. Não se conhecem entre si e são muito pobres. Se um homem chega a saber que é um Lamed Wufnik morre imediatamente e há outro, talvez em outra região do planeta, que toma seu lugar. São, sem suspeitá-lo, os secretos pilares do universo. Se não fosse por eles, Deus aniquilaria o gênero humano. São nossos salvadores e não o sabem”.
    O bardo argentino parece ter inspirado-se nos Lamed Wufniks para compor um poema que figura entre seus mais belos. Os justos, publicado em 1981, consiste num fragmento que nos maravilha pela delicadeza de suas imagens e pela simplicidade de sua enumeração: Borges nos fala de pessoas singelas cuja forma de contribuir para o bem é sutil, porque reside na beleza das pequenas coisas – cuidar do jardim, apreciar a música, acariciar um animal adormecido, preferir que os outros tenham razão.
    Borges nos mostra aqueles que são, sem que o suspeitem, os secretos pilares do universo. Os justos, em seu sincero comedimento, representam nobres exemplos de ajuda, sacrifício e humildade. Cumpre-nos, se não conseguimos polir plenamente a nós mesmos, ao menos aprender algo deles.


LOS JUSTOS

Un hombre que cultiva su jardín, como quería Voltaire.
El que agradece que en la tierra haya música.
El que descubre con placer una etimología.
Dos empleados que en un café del Sur juegan un silencioso ajedrez.
El ceramista que premedita un color y una forma.
El tipógrafo que compone bien esta página, que tal vez no le agrada.
Una mujer y un hombre que leen los tercetos finales de cierto canto.
El que acaricia a un animal dormido.
El que justifica o quiere justificar un mal que le han hecho.
El que agradece que en la tierra haya Stevenson.
El que prefiere que los otros tengan razón.
Esas personas, que se ignoran, están salvando el mundo.



OS JUSTOS

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.


(BORGES, Jorge Luis. Obras completas II, 1975 – 1985
Buenos Aires: María Kodama y Emecé Editores S.A., 1989, pág. 326).

quarta-feira, 15 de junho de 2022

A elegância socrática

 



    Assim se refere Diógenes Laércio ao modo de viver de Sócrates:

  “Sócrates foi um homem independente e da mais alta dignidade. No sétimo livro de seus Comentários, Panfile menciona a oferta que Alcibíades lhe fez de um grande terreno onde poderia construir um a casa; Sócrates, todavia, replicou: ‘Suponhamos então que eu necessitasse de sandálias e me oferecesses um couro inteiro para fazer um par; seria ridículo se eu aceitasse.’ Muitas vezes, observando a grande quantidade de mercadorias expostas à venda, ele dizia a si mesmo: ‘De quantas coisas não tenho necessidade!’
    (...)
    Ele era capaz de desdenhar quem o ridicularizasse, e se orgulhava de sua vida simples e de jamais haver aceito recompensa de ninguém; costumava dizer que apreciava principalmente o alimento que requeria o mínimo de temperos e que considerava mais agradável a bebida que não lhe despertava a vontade de beber mais, e que estava mais próximo dos deuses pelo fato de ter o mínimo de necessidades.
    (...)
    Sócrates costumava dizer que os outros homens viviam para comer, enquanto ele comia para viver. (...) Aisquines disse-lhe: ‘Sou pobre e nada mais tenho a dar-te além de mim mesmo’; Sócrates respondeu: ‘Ora! Não percebes que me estás oferecendo o maior de todos os presentes?’
    (...) 
    A alguém que falou: ‘Não achas que tal pessoa te injuria?’ Sócrates respondeu: ‘Não, pois essas coisas não me atingem’”.


(LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres.
Tradução de Mário da Gama Kury. Brasìlia: Editora UnB, 1987, págs. 53, 54, 56 e 57).

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Dom Quixote: idealismo, poesia

 

Gustave Doré. D. Quixote na sua biblioteca, 1863.

    No capítulo XVI do Segundo Livro, D. Quixote vale-se de sua retórica implacável para mostrar a D. Diego de Miranda, um abastado fidalgo, a tolice de crer desvalidas as histórias da cavalaria andante e a poesia. Defende do fidalgo o nosso herói, primeiro, seu idealismo romântico – expressão suprema da liberdade humana –, nele representado pela fantasia da armadura, da lança e do escudo; depois, argumenta-lhe que não deve buscar dissuadir o filho, poeta, de sua paixão, pois a arte dos versos “é feita de uma alquimia de tal virtude que quem a souber tratar a mudará em ouro puríssimo e de inestimável preço”, e, sendo a pena “a língua da alma”, a poesia será preciosa se o poeta também o for – razão para que D. Diego deixe o filho caminhar “aonde sua estrela o chama”. 
   Dom Quixote é um compêndio de muitas virtudes. Suas páginas imortais guardam aventuras cômicas, sátiras aos valores de sua época, jogos de autoria e lições para toda a vida. Como disse Dostoiévski: Se o mundo acabasse e no Além nos perguntassem: “Então, o que você aprendeu da vida?”, poderíamos simplesmente mostrar o D. Quixote e dizer: “Esta é a minha conclusão sobre a vida. E você? O que me diz?”.


    Nessas razões [D. Quixote e Sancho Pança] estavam, quando os alcançou um homem que vinha atrás deles pelo mesmo caminho sobre uma formosíssima égua tordilha, vestindo um gabão de fino pano verde com listras de veludo leonado e na cabeça um gorro do mesmo veludo; os adereços da égua eram de campo e à gineta, também verdes e avinhados; trazia um alfanje mourisco pendente de um largo talim em verde e ouro, e os borzeguins eram do mesmo lavor deste; as esporas não eram douradas, mas envernizadas de verde, tão lustrosas e reluzentes que, por combinarem com todo o traje, pareciam melhor que se fossem de ouro puro. Quando chegou a eles o viandante, saudou-os com muita cortesia e, picando a égua, foi passando ao largo, mas D. Quixote lhe disse:
    – Senhor galante, se vossa mercê leva o mesmo caminho que nós e não lhe importa em dar-se menos pressa, mercê nos faria em seguir conosco.
    – Em verdade – respondeu o da égua – que não passaria tão ao largo, se não fosse o temor de que com a companhia de minha égua se alvoroçasse o seu cavalo.
    – Bem pode, senhor – respondeu Sancho –, bem pode puxar as rédeas à sua égua, porque o nosso cavalo é o mais honesto e comedido do mundo: nunca em semelhantes ocasiões faz vileza alguma, e uma só vez que se desmandou a fazê-la, meu senhor e eu por tal pagamos à onzena. Digo outra vez que, se quiser, vossa mercê pode frear sua égua, pois, ainda que o cavalo a recebesse de bandeja, tenha por certo que nem a cheirava.
    Colheu as rédeas o viandante, admirando-se da apostura e do rosto de D. Quixote, o qual ia sem celada, pois Sancho a levava como maleta presa ao arção dianteiro da albarda do ruço, e se o de verde muito mirava a D. Quixote, muito mais mirava D. Quixote ao de verde, parecendo-lhe homem de chapa. A idade mostrava ser de cinquenta anos; as cãs, poucas, e o rosto, aquilino; enfim, no traje e na apostura mostrava ser homem de boas prendas.
    O que o de verde julgou de D. Quixote de La Mancha foi que jamais vira semelhante maneira nem parecer de homem: admirou-o a compridez do seu cavalo, a grandeza do seu corpo, a magreza e a amarelidão do seu rosto, suas armas, seu porte e compostura, figura e retrato não vistos naquela terra desde longes tempos atrás. D. Quixote reparou na atenção com que o viandante o mirava e leu naquela suspensão o seu desejo, e como era tão cortês e tão amigo de dar gosto a todos, antes que lhe perguntasse alguma coisa, atalhou-o dizendo:
    – Esta figura que vossa mercê em mim viu, por ser tão nova e tão fora dos que comumente se usam, não me maravilha que o tenha maravilhado; mas deixará vossa mercê de o estar quando lhe disser, como lhe digo, que sou cavaleiro
    desses que dizem as gentes
    que a suas aventuras vão.
Saí da minha pátria, empenhei meu cabedal, deixei o meu regalo e me entreguei aos braços da fortuna, que me levassem aonde mais fosse servida. Resolvi-me a ressuscitar a já morta andante cavalaria e muitos dias há que, tropeçando aqui, caindo ali, despenhando-me cá e levantando-me acolá, tenho cumprido grande parte do meu desejo, socorrendo viúvas, amparando donzelas e favorecendo casadas, órfãos e pupilos, próprio e natural ofício dos cavaleiros andantes; e assim, por minhas valorosas, muitas e cristãs façanhas, já mereci andar em estampa em quase todas ou as mais nações do mundo: trinta mil volumes se imprimiram da minha história, e vai ela encaminhada a ser impressa trinta mil milhares de vezes, se o céu não o estorvar. Finalmente, para tudo encerrar em breves palavras, ou em uma só, digo que eu sou D. Quixote de La Mancha, por outro nome chamado o Cavaleiro da Triste Figura; e posto que o elogio em boca própria é vitupério, por vezes me é forçoso fazer o meu, e tal se entende quando não se acha presente quem o faça. Portanto, senhor gentil-homem, nem este cavalo, nem esta lança, nem este escudo e escudeiro, nem toda esta armadura, nem a amarelidão do meu rosto, nem a minha acentuada magreza vos poderão admirar daqui em diante, tendo já sabido quem sou e a profissão que faço.
    Calou-se D. Quixote em dizendo isto, e o de verde, segundo se demorava em responder, parecia que não acertava a fazê-lo, mas dali a um bom espaço lhe disse:
    – Acertastes, senhor cavaleiro, a conhecer na minha suspensão o meu desejo, mas não a desfazer a maravilha que me causava o vos ter visto, pois inda que digais que o saber quem sois me tiraria dela, não foi assim, antes agora que o sei fico mais suspenso e maravilhado. Como é possível haver hoje cavaleiros andantes no mundo e haver histórias impressas de verdadeiras cavalarias? Não me posso persuadir que haja na terra quem favoreça viúvas, ampare donzelas, nem honre casadas, nem socorra órfãos, e jamais o crera se o não tivesse visto em vossa mercê com meus olhos. Bendito seja o céu, pois com essa história que vossa mercê diz que está impressa das suas altas e verdadeiras cavalarias se terão posto em esquecimento as inumeráveis dos fingidos cavaleiros andantes, de que estava cheio o mundo, tão em dano dos bons costumes e tão em prejuízo e descrédito das boas histórias.
    – Muito há que dizer – respondeu D. Quixote – quanto a serem ou não fingidas as histórias dos andantes cavaleiros.
    – E acaso há quem duvide – respondeu o verde – que não são falsas as tais histórias?
    – Eu duvido – respondeu D. Quixote –, e fique o caso por aqui, pois, se a nossa jornada durar, espero em Deus convencer vossa mercê de que fez mal em seguir a corrente dos que têm por certo que não são verdadeiras.
    Desta última razão de D. Quixote tomou suspeitas o viandante de que D. Quixote devia de ser algum mentecapto, e aguardava que com outras o confirmasse. Mas antes que desviassem por outros razoamentos, D. Quixote lhe pediu que dissesse quem era, pois ele lhe dera parte da sua condição e da sua vida. Ao que respondeu o do verde gabão:
    – Eu, senhor cavaleiro da Triste Figura, sou um fidalgo natural do lugar onde hoje iremos almoçar, se Deus quiser. Sou mais que medianamente rico e o meu nome é D. Diego de Miranda, passo a vida com minha mulher e meus filhos e meus amigos, meus exercícios são o da caça e da pesca, mas não mantenho nem falcão nem cães, senão algum perdigão manso ou algum furão atrevido. Tenho cerca de seis dúzias de livros, parte deles em romance e parte em latim, de histórias alguns e de devoção outros; os de cavalarias ainda não cruzaram os umbrais das minhas portas; folheio mais os profanos que os devotos, como sejam de honesto entretenimento, deleitem com a linguagem e admirem e suspendam com a invenção, posto que destes haja muito poucos na Espanha. Às vezes como à mesa dos meus vizinhos e amigos, e muitas vezes os convido à minha, que é sempre limpa e asseada, e nada escassa; não gosto de murmurar nem consinto que diante de mim se murmure; não esquadrinho vidas alheias nem sou lince dos feitos dos outros; ouço missa todos os dias, reparto dos meus bens aos pobres, sem fazer alarde das boas obras, para não entrada em meu coração à hipocrisia e à vanglória, inimigos que facilmente se apoderam do mais recatado coração; procuro pôr em paz os que sei que estão em desavença; sou devoto de Nossa Senhora e sempre confio na infinita misericórdia de Deus Nosso Senhor.
    Atentíssimo esteve Sancho à relação da vida e passatempos do fidalgo, e, parecendo-lhe boa e santa e que quem a fazia devia de fazer milagres, saltou do ruço e com grande pressa foi-se agarrar do estribo direito, e com devoto coração e quase lágrimas lhe beijou os pés uma e muitas vezes. O qual visto pelo fidalgo, lhe perguntou:
    – Que fazeis, irmão? Que beijos são esses?
   – Deixe-me beijar – respondeu Sancho –, pois vossa mercê me parece o primeiro santo à gineta que conheci em todos os dias da minha vida.
    – Não sou santo – respondeu o fidalgo –, senão grande pecador. Vós sim, irmão, é que deveis de ser bom, como vossa simplicidade o mostra.
    Voltou Sancho a montar na albarda, tendo arrancado o riso da profunda malenconia do seu amo e causado nova admiração a D. Diego. Perguntou-lhe D. Quixote quantos filhos tinha, dizendo que as coisas em que punham o sumo bem os filósofos antigos, que careciam do verdadeiro conhecimento de Deus, eram os bens da natureza, os da fortuna, o ter muitos amigos e muitos e bons filhos.
    – Eu, senhor D. Quixote – respondeu o fidalgo –, tenho um filho que, se não o tivesse, talvez me julgasse mais ditoso do que sou, e não porque ele seja mau, mas porque não é tão bom quanto eu quisera. Tem de idade perto de dezoito anos, seis dos quais passou em Salamanca, aprendendo as línguas latina e grega, e quando eu quis que ele entrasse a estudar outras ciências, achei-o tão embebido na da poesia (se é que se pode chamar ciência), que não é possível fazê-lo arrostar a das leis, que eu quisera que estudasse, nem a rainha de todas elas, a teologia. Quisera eu que ele fosse coroa da sua linhagem, pois vivemos num século em que nossos reis premiam altamente as virtuosas e boas letras, porque letras sem virtudes são pérolas no muladar. Todo o dia ele passa a averiguar se Homero disse bem ou mal em tal verso da Ilíada, se Marcial se mostrou desonesto ou não em tal epigrama, se se hão de entender de uma maneira ou outra tais e tais versos de Virgílio. Enfim, todo seu trato é com os livros dos referidos poetas, e com os de Horácio, Pérsio, Juvenal e Tibulo, pois dos modernos e vernáculos não faz muito caso, e apesar da pouca estima que mostra ter pela poesia em romance, tem agora os pensamentos desvanecidos em fazer uma glosa a quatro versos que lhe enviaram de Salamanca, e penso que são de justa literária.
    Ao que respondeu D. Quixote:
    – Os filhos, senhor, são pedaços das entranhas dos pais, e assim hão de ser amados, sejam eles bons ou maus, como às almas que nos dão a vida. Aos pais cumpre encaminhá-los desde pequenos pelos passos da virtude, da boa criação e dos bons e cristãos costumes, para que, quando grandes, sejam báculo da velhice dos pais e glória da sua posteridade; e quanto a forçá-los a estudar esta ou aquela ciência, não o tenho por acertado, bem que a persuasão não seja danosa, e quando não se há de estudar para pane lucrando, sendo o estudante venturoso de ter recebido do céu pais que o sustentem, seria eu de parecer que o deixem seguir aquela ciência a que mais o virem inclinado, e, ainda que a da poesia seja menos útil que deleitável, não é daquelas que soem desonrar quem as possui. A poesia, senhor fidalgo, a meu ver é como uma donzela tenra e de pouca idade e em extremo formosa, a qual têm cuidado de enriquecer, polir e adornar muitas outras donzelas, que são todas as outras ciências, e ela se há de servir de todas, e todas se hão de abonar com ela; mas essa tal donzela não quer ser manuseada, nem levada pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos cantos dos palácios. Ela é feita de uma alquimia de tal virtude que quem a souber tratar a mudará em ouro puríssimo de inestimável preço; quem a tiver há de ter sempre mão nela, sem deixar que corra em torpes sátiras nem em desalmados sonetos; não há de ser vendável de maneira alguma, quando não seja em poemas heroicos, em penas tragédias ou em comédias alegres e artificiosas; não se há de deixar tratar por maganos, nem pelo ignorante vulgo incapaz de conhecer nem estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor, que chamo vulgo só à gente plebeia e humilde, pois todo aquele que não sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve entrar no número do vulgo. E assim, quem tratar e tiver a poesia com os requisitos que tenho dito será famoso e seu nome estimado em todas as nações políticas do mundo. Quanto ao que dizeis, senhor, que o vosso filho não estima muito a poesia em romance, tenho aqui para mim que não anda nisso muito acertado, e a razão é a seguinte: o grande Homero não escreveu em latim, porque era grego, nem Virgílio escreveu em grego, porque era latino. Em conclusão, todos os poetas antigos escreveram na língua que mamaram no leite, e não foram buscar as estrangeiras para declarar a alteza dos seus conceitos. E sendo isto assim, razão seria que tal costume se estendesse por todas as nações, e que não se desmerecesse o poeta alemão porque escreve em sua língua, nem o castelhano, nem sequer o vascongado que escreve na dele. Mas o vosso filho (segundo eu imagino, senhor) não deve de estar mal com a poesia em romance, senão com os poetas que a ele se limitam, sem saber outras línguas nem outras ciências que adornem e espertem e ajudem seu natural impulso, e ainda nisto pode haver erro, porque, segundo é opinião verdadeira, o poeta nasce, querendo com isso dizer que o poeta natural sai poeta do ventre da mãe, e com aquela inclinação que o céu lhe deu, sem mais estudo nem artificio, compõe coisas que abonam a verdade daquele que disse “Est Deus in nobis”, etc. Também digo que o natural poeta que se ajudar da arte será muito melhor e fará vantagem ao poeta que só por saber a arte o pretenda ser. A razão é que a arte não faz vantagem à natureza, mas a aperfeiçoa, assim que, misturadas a natureza e a arte, e a arte com a natureza, sairá um perfeitíssimo poeta. Seja, pois, a conclusão da minha fala, senhor fidalgo, que vossa mercê deixe o seu filho caminhar aonde sua estrela o chama, pois, sendo ele tão bom estudante como deve de ser, e tendo já galgado felizmente o primeiro degrau das ciências, que é o das línguas, com elas por si mesmo galgará até os píncaros das letras humanas, as quais tão bem parecem em um cavaleiro de capa e espada e assim o adornam, honram e engrandecem como as mitras aos bispos ou as garnachas aos peritos jurisconsultos. Repreenda vossa mercê o seu filho se ele fizer sátiras que prejudiquem as honras alheias, e castigue-o, e rasgue-lhas; mas se ele fizer sermões ao modo de Horácio, onde condene os vícios em geral, como tão elegantemente fez o latino, elogie-o, pois é lícito ao poeta escrever contra a inveja e em seus versos dizer mal dos invejosos, e assim dos outros vícios, contanto que não assinale pessoa alguma; mas poetas há que, a troca de dizer uma malícia, põem-se a perigo de serem desterrados para as ilhas do Ponto. Se o poeta for casto nos seus costumes, também o será nos seus versos; a pena é a língua da alma: quais foram os conceitos que nela se gerarem, tais serão seus escritos; e quando os reis e príncipes veem a milagrosa ciência da poesia em sujeitos prudentes, virtuosos e graves, sempre os honram, estimam e enriquecem, e até os coroam com as folhas da árvore que o raio não ofende, como em sinal de que não hão de ser ofendidos por ninguém aqueles que com tais coroas se veem honrados e adornada sua testa.
    Admirado ficou o do verde gabão do arrazoado de D. Quixote, e tanto que foi depondo a opinião que tinha de ser ele mentecapto. Mas Sancho, por não ser a conversação muito do seu gosto, no meio dela se desviara do caminho para pedir um pouco de leite a uns pastores que ali perto estavam ordenhando umas ovelhas, e já o fidalgo tornava a renovar o colóquio, em extremo satisfeito da discrição e do bom discurso de D. Quixote, quando, levantando este a cabeça, viu que pelo caminho por onde eles iam vinha um carro cheio de bandeiras reais, e cuidando que devia de ser alguma nova aventura, em altas vozes chamou por Sancho para que lhe viesse trazer a celada. O qual Sancho, ouvindo-se chamar, deixou os pastores e a toda pressa picou o ruço e chegou aonde estava seu amo, a quem aconteceu uma espantosa e desatinada aventura.


    En estas razones estaban, cuando los alcanzó un hombre que detrás dellos por el mismo camino venía sobre una muy hermosa yegua tordilla, vestido un gabán de paño fino verde, jironado de terciopelo leonado, con una montera del mismo terciopelo; el aderezo de la yegua era de campo y de la jineta, asimismo de morado y verde; traía un alfanje morisco pendiente de un ancho tahalí de verde y oro, y los borceguíes eran de la labor del tahalí; las espuelas no eran doradas, sino dadas con un barniz verde, tan tersas y bruñidas, que, por hacer labor con todo el vestido, parecían mejor que si fuera de oro puro. Cuando llegó a ellos el caminante los saludó cortésmente, y, picando a la yegua, se pasaba de largo, pero don Quijote le dijo:
    — Señor galán, si es que vuestra merced lleva el camino que nosotros y no importa el darse priesa, merced recibiría en que nos fuésemos juntos.
    — En verdad — respondió el de la yegua — que no me pasara tan de largo si no fuera por temor que con la compañía de mi yegua no se alborotara ese caballo.
    — Bien puede, señor — respondió a esta sazón Sancho —, bien puede tener las riendas a su yegua, porque nuestro caballo es el más honesto y bien mirado del mundo: jamás en semejantes ocasiones ha hecho vileza alguna, y una vez que se desmandó a hacerla la lastamos mi señor y yo con las setenas. Digo otra vez que puede vuestra merced detenerse, si quisiere, que aunque se la den entre dos platos, a buen seguro que el caballo no la arrostre.
    Detuvo la rienda el caminante, admirándose de la apostura y rostro de don Quijote, el cual iba sin celada, que la llevaba Sancho como maleta en el arzón delantero de la albarda del rucio; y si mucho miraba el de lo verde a don Quijote, mucho más miraba don Quijote al de lo verde, pareciéndole hombre de chapa. La edad mostraba ser de cincuenta años; las canas, pocas, y el rostro, aguileño; la vista, entre alegre y grave; finalmente, en el traje y apostura daba a entender ser hombre de buenas prendas. Lo que juzgó de don Quijote de la Mancha el de lo verde fue que semejante manera ni parecer de hombre no le había visto jamás: admiróle la longura de su caballo, la grandeza de su cuerpo, la flaqueza y amarillez de su rostro, sus armas, su ademán y compostura, figura y retrato no visto por luengos tiempos atrás en aquella tierra. Notó bien don Quijote la atención con que el caminante le miraba y leyóle en la suspensión su deseo; y como era tan cortés y tan amigo de dar gusto a todos, antes que le preguntase nada le salió al camino, diciéndole:
    — Esta figura que vuesa merced en mí ha visto, por ser tan nueva y tan fuera de las que comúnmente se usan, no me maravillaría yo de que le hubiese maravillado, pero dejará vuesa merced de estarlo cuando le diga, como le digo, que soy caballero
    destos que dicen las gentes
    que a sus aventuras van.
Salí de mi patria, empeñé mi hacienda, dejé mi regalo y entreguéme en los brazos de la fortuna, que me llevasen donde más fuese servida. Quise resucitar la ya muerta andante caballería, y ha muchos días que tropezando aquí, cayendo allí, despeñándome acá y levantándome acullá, he cumplido gran parte de mi deseo, socorriendo viudas, amparando doncellas y favoreciendo casadas, huérfanos y pupilos, propio y natural oficio de caballeros andantes; y así, por mis valerosas, muchas y cristianas hazañas, he merecido andar ya en estampa en casi todas o las más naciones del mundo: treinta mil volúmenes se han impreso de mi historia, y lleva camino de imprimirse treinta mil veces de millares, si el cielo no lo remedia. Finalmente, por encerrarlo todo en breves palabras, o en una sola, digo que yo soy don Quijote de la Mancha, por otro nombre llamado el Caballero de la Triste Figura; y puesto que las propias alabanzas envilecen, esme forzoso decir yo tal vez las mías, y esto se entiende cuando no se halla presente quien las diga; así que, señor gentilhombre, ni este caballo, esta lanza, ni este escudo ni escudero, ni todas juntas estas armas, ni la amarillez de mi rostro, ni mi atenuada flaqueza, os podrá admirar de aquí adelante, habiendo ya sabido quién soy y la profesión que hago.
    Calló en diciendo esto don Quijote, y el de lo verde, según se tardaba en responderle, parecía que no acertaba a hacerlo, pero de allí a buen espacio le dijo:
    — Acertastes, señor caballero, a conocer por mi suspensión mi deseo, pero no habéis acertado a quitarme la maravilla que en mí causa el haberos visto, que puesto que, como vos, señor, decís, que el saber ya quién sois me lo podría quitar, no ha sido así, antes agora que lo sé quedo más suspenso y maravillado. ¿Cómo y es posible que hay hoy caballeros andantes en el mundo, y que hay historias impresas de verdaderas caballerías? No me puedo persuadir que haya hoy en la tierra quien favorezca viudas, ampare doncellas, ni honre casadas, ni socorra huérfanos, y no lo creyera si en vuesa merced no lo hubiera visto con mis ojos. ¡Bendito sea el cielo!, que con esa historia que vuesa merced dice que está impresa de sus altas y verdaderas caballerías se habrán puesto en olvido las innumerables de los fingidos caballeros andantes, de que estaba lleno el mundo, tan en daño de las buenas costumbres y tan en perjuicio y descrédito de las buenas historias.
    — Hay mucho que decir — respondió don Quijote — en razón de si son fingidas o no las historias de los andantes caballeros.
    — Pues ¿hay quien dude — respondió el Verde — que no son falsas las tales historias?
    — Yo lo dudo — respondió don Quijote —, y quédese esto aquí, que si nuestra jornada dura, espero en Dios de dar a entender a vuesa merced que ha hecho mal en irse con la corriente de los que tienen por cierto que no son verdaderas.
    Desta última razón de don Quijote tomó barruntos el caminante de que don Quijote debía de ser algún mentecato, y aguardaba que con otras lo confirmase; pero antes que se divertiesen en otros razonamientos, don Quijote le rogó le dijese quién era, pues él le había dado parte de su condición y de su vida. A lo que respondió el del Verde Gabán:
    — Yo, señor Caballero de la Triste Figura, soy un hidalgo natural de un lugar donde iremos a comer hoy, si Dios fuere servido. Soy más que medianamente rico y es mi nombre don Diego de Miranda; paso la vida con mi mujer y con mis hijos y con mis amigos; mis ejercicios son el de la caza y pesca, pero no mantengo ni halcón ni galgos, sino algún perdigón manso o algún hurón atrevido. Tengo hasta seis docenas de libros, cuáles de romance y cuáles de latín, de historia algunos y de devoción otros; los de caballerías aún no han entrado por los umbrales de mis puertas. Hojeo más los que son profanos que los devotos, como sean de honesto entretenimiento, que deleiten con el lenguaje y admiren y suspendan con la invención, puesto que destos hay muy pocos en España. Alguna vez como con mis vecinos y amigos, y muchas veces los convido; son mis convites limpios y aseados y nonada escasos; ni gusto de murmurar ni consiento que delante de mí se murmure; no escudriño las vidas ajenas ni soy lince de los hechos de los otros; oigo misa cada día, reparto de mis bienes con los pobres, sin hacer alarde de las buenas obras, por no dar entrada en mi corazón a la hipocresía y vanagloria, enemigos que blandamente se apoderan del corazón más recatado; procuro poner en paz los que sé que están desavenidos; soy devoto de Nuestra Señora y confío siempre en la misericordia infinita de Dios Nuestro Señor.
    Atentísimo estuvo Sancho a la relación de la vida y entretenimientos del hidalgo, y, pareciéndole buena y santa y que quien la hacía debía de hacer milagros, se arrojó del rucio y con gran priesa le fue a asir del estribo derecho, y con devoto corazón y casi lágrimas le besó los pies una y muchas veces. Visto lo cual por el hidalgo, le preguntó:   
    — ¿Qué hacéis, hermano? ¿Qué besos son estos?
    — Déjenme besar — respondió Sancho —, porque me parece vuesa merced el primer santo a la jineta que he visto en todos los días de mi vida.
    — No soy santo — respondió el Hidalgo —, sino gran pecador; vos sí, hermano, que debéis de ser bueno, como vuestra simplicidad lo muestra.
    Volvió Sancho a cobrar la albarda, habiendo sacado a plaza la risa de la profunda malencolía de su amo y causado nueva admiración a don Diego. Preguntóle don Quijote que cuántos hijos tenía, y díjole que una de las cosas en que ponían el sumo bien los antiguos filósofos, que carecieron del verdadero conocimiento de Dios, fue en los bienes de la naturaleza, en los de la fortuna, en tener muchos amigos y en tener muchos y buenos hijos.
     – Yo, señor don Quijote – respondió el Hidalgo –, tengo un hijo, que, a no tenerle, quizá me juzgara por más dichoso de lo que soy, y no porque él sea malo, sino porque no es tan bueno como yo quisiera. Será de edad de diez y ocho años; los seis ha estado en Salamanca, aprendiendo las lenguas latina y griega, y cuando quise que pasase a estudiar otras ciencias, halléle tan embebido en la de la poesía (si es que se puede llamar ciencia), que no es posible hacerle arrostrar la de las leyes, que yo quisiera que estudiara, ni de la reina de todas, la teología. Quisiera yo que fuera corona de su linaje, pues vivimos en siglo donde nuestros reyes premian altamente las virtuosas y buenas letras, porque letras sin virtud son perlas en el muladar. Todo el día se le pasa en averiguar si dijo bien o mal Homero en tal verso de la Ilíada; si Marcial anduvo deshonesto o no en tal epigrama; si se han de entender de una manera o otra tales y tales versos de Virgilio. En fin, todas sus conversaciones son con los libros de los referidos poetas, y con los de Horacio, Persio, Juvenal y Tibulo, que de los modernos romancistas no hace mucha cuenta; y con todo el mal cariño que muestra tener a la poesía de romance, le tiene agora desvanecidos los pensamientos el hacer una glosa a cuatro versos que le han enviado de Salamanca, y pienso que son de justa literaria.
    A todo lo cual respondió don Quijote:
    – Los hijos, señor, son pedazos de las entrañas de sus padres, y, así, se han de querer, o buenos o malos que sean, como se quieren las almas que nos dan vida. A los padres toca el encaminarlos desde pequeños por los pasos de la virtud, de la buena crianza y de las buenas y cristianas costumbres, para que cuando grandes sean báculo de la vejez de sus padres y gloria de su posteridad; y en lo de forzarles que estudien esta o aquella ciencia, no lo tengo por acertado, aunque el persuadirles no será dañoso, y cuando no se ha de estudiar para pane lucrando, siendo tan venturoso el estudiante que le dio el cielo padres que se lo dejen, sería yo de parecer que le dejen seguir aquella ciencia a que más le vieren inclinado; y aunque la de la poesía es menos útil que deleitable, no es de aquellas que suelen deshonrar a quien las posee. La poesía, señor hidalgo, a mi parecer es como una doncella tierna y de poca edad y en todo estremo hermosa, a quien tienen cuidado de enriquecer, pulir y adornar otras muchas doncellas, que son todas las otras ciencias, y ella se ha de servir de todas, y todas se han de autorizar con ella; pero esta tal doncella no quiere ser manoseada, ni traída por las calles, ni publicada por las esquinas de las plazas ni por los rincones de los palacios. Ella es hecha de una alquimia de tal virtud, que quien la sabe tratar la volverá en oro purísimo de inestimable precio; hala de tener el que la tuviere a raya, no dejándola correr en torpes sátiras ni en desalmados sonetos; no ha de ser vendible en ninguna manera, si ya no fuere en poemas heroicos, en lamentables tragedias o en comedias alegres y artificiosas; no se ha de dejar tratar de los truhanes, ni del ignorante vulgo, incapaz de conocer ni estimar los tesoros que en ella se encierran. Y no penséis, señor, que yo llamo aquí vulgo solamente a la gente plebeya y humilde, que todo aquel que no sabe, aunque sea señor y príncipe, puede y debe entrar en número de vulgo. Y, así, el que con los requisitos que he dicho tratare y tuviere a la poesía, será famoso y estimado su nombre en todas las naciones políticas del mundo. Y a lo que decís, señor, que vuestro hijo no estima mucho la poesía de romance, doime a entender que no anda muy acertado en ello, y la razón es esta: el grande Homero no escribió en latín, porque era griego, ni Virgilio no escribió en griego, porque era latino; en resolución, todos los poetas antiguos escribieron en la lengua que mamaron en la leche, y no fueron a buscar las estranjeras para declarar la alteza de sus conceptos; y siendo esto así, razón sería se estendiese esta costumbre por todas las naciones, y que no se desestimase el poeta alemán porque escribe en su lengua, ni el castellano, ni aun el vizcaíno que escribe en la suya. Pero vuestro hijo, a lo que yo, señor, imagino, no debe de estar mal con la poesía de romance, sino con los poetas que son meros romancistas, sin saber otras lenguas ni otras ciencias que adornen y despierten y ayuden a su natural impulso, y aun en esto puede haber yerro, porque, según es opinión verdadera, el poeta nace: quieren decir que del vientre de su madre el poeta natural sale poeta, y con aquella inclinación que le dio el cielo, sin más estudio ni artificio, compone cosas, que hace verdadero al que dijo: «Est Deus in nobis», etc. También digo que el natural poeta que se ayudare del arte será mucho mejor y se aventajará al poeta que solo por saber el arte quisiere serlo: la razón es porque el arte no se aventaja a la naturaleza, sino perficiónala; así que, mezcladas la naturaleza y el arte, y el arte con la naturaleza, sacarán un perfetísimo poeta. Sea, pues, la conclusión de mi plática, señor hidalgo, que vuesa merced deje caminar a su hijo por donde su estrella le llama, que siendo él tan buen estudiante como debe de ser, y habiendo ya subido felicemente el primer escalón de las ciencias, que es el de las lenguas, con ellas por sí mesmo subirá a la cumbre de las letras humanas, las cuales tan bien parecen en un caballero de capa y espada y así le adornan, honran y engrandecen como las mitras a los obispos o como las garnachas a los peritos jurisconsultos. Riña vuesa merced a su hijo si hiciere sátiras que perjudiquen las honras ajenas, y castíguele, y rómpaselas; pero si hiciere sermones al modo de Horacio, donde reprehenda los vicios en general, como tan elegantemente él lo hizo, alábele, porque lícito es al poeta escribir contra la invidia, y decir en sus versos mal de los invidiosos, y así de los otros vicios, con que no señale persona alguna; pero hay poetas que, a trueco de decir una malicia, se pondrán a peligro que los destierren a las islas de Ponto. Si el poeta fuere casto en sus costumbres, lo será también en sus versos; la pluma es lengua del alma: cuales fueren los conceptos que en ella se engendraren, tales serán sus escritos; y cuando los reyes y príncipes veen la milagrosa ciencia de la poesía en sujetos prudentes, virtuosos y graves, los honran, los estiman y los enriquecen, y aun los coronan con las hojas del árbol a quien no ofende el rayo, como en señal que no han de ser ofendidos de nadie los que con tales coronas veen honradas y adornadas sus sienes.
    – Yo, señor don Quijote – respondió el Hidalgo –, tengo un hijo, que, a no tenerle, quizá me juzgara por más dichoso de lo que soy, y no porque él sea malo, sino porque no es tan bueno como yo quisiera. Será de edad de diez y ocho años; los seis ha estado en Salamanca, aprendiendo las lenguas latina y griega, y cuando quise que pasase a estudiar otras ciencias, halléle tan embebido en la de la poesía (si es que se puede llamar ciencia), que no es posible hacerle arrostrar la de las leyes, que yo quisiera que estudiara, ni de la reina de todas, la teología. Quisiera yo que fuera corona de su linaje, pues vivimos en siglo donde nuestros reyes premian altamente las virtuosas y buenas letras, porque letras sin virtud son perlas en el muladar. Todo el día se le pasa en averiguar si dijo bien o mal Homero en tal verso de la Ilíada; si Marcial anduvo deshonesto o no en tal epigrama; si se han de entender de una manera o otra tales y tales versos de Virgilio. En fin, todas sus conversaciones son con los libros de los referidos poetas, y con los de Horacio, Persio, Juvenal y Tibulo, que de los modernos romancistas no hace mucha cuenta; y con todo el mal cariño que muestra tener a la poesía de romance, le tiene agora desvanecidos los pensamientos el hacer una glosa a cuatro versos que le han enviado de Salamanca, y pienso que son de justa literaria.


(Cervantes Saavedra, Miguel de. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha,
Segundo Livro. Tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Editora 34, 2017, págs. 201 – 209).

quarta-feira, 1 de junho de 2022

A chegada dos tártaros

 


   Dino Buzzati (1906-1972) colheu da rotina insípida de seu trabalho uma ideia de romance. A história de Giovanni Drogo, jovem militar convocado a servir numa remota fortaleza à beira do deserto, diluía em prosa os sentimentos de Buzzati: em O Deserto dos Tártaros, de 1940, Drogo e seus colegas são ordenados a aguardar, dia e noite, o ataque dos inimigos; ocorre que os dias e as noites se vão, e os tártaros nunca aparecem, tornando a diligência do nosso herói um mergulho existencial no tempo perdido, na solidão e no desencanto.
    O desfecho é tragicamente inevitável: Drogo, tendo enfrentado uma espera vã durante toda a vida, morre. Mas seus últimos sentimentos traduzem-se num sorriso secreto – e eis a beleza da obra. É como se Drogo, velho e solitário, vencesse a frustração que tanto lhe havia aferroado a alma. Ecoo as palavras de Antonio Candido:
    O começo diz abertamente que Giovanni Drogo não tinha estima por si mesmo. Ora, o fim consiste na aquisição dessa autoestima que lhe faltava. Durante a vida inteira ele esperou o momento que permitiria uma espécie de revelação do seu ser, de maneira que os outros pudessem reconhecer o seu valor, o que o levaria a reconhecê-lo ele próprio. Mas aqui surge a contradição suprema, pois esse momento acaba sendo o da morte. Portanto, é ela que define o seu ser e lhe dá a oportunidade de encontrar justificativa para a própria vida. De algum modo, uma afirmação por meio da suprema negação. [...] A morte coletiva e teatral dos sonhos militares, desejada como coroamento da vida, cede lugar à glória intransferível da morte solitária, sem testemunhas e sem ação em torno, significando apenas pela sua própria força. E nós lembramos Montaigne, quando diz que ‘a firmeza na morte é sem dúvida a ação mais notável da vida’.
    Talvez o gesto terminal de Drogo signifique que, intimamente, os tártaros finalmente chegaram.


   Mas depois veio-lhe à mente: e se tudo fosse um engano? E se sua coragem não passasse de embriaguez? Se isso se devesse apenas ao maravilhoso crepúsculo, ao ar perfumado, à pausa das dores físicas, às canções ao piano lá embaixo? E se dentro de alguns minutos, dentro de uma hora, ele precisasse voltar a ser o Drogo de antes, fraco e vencido?
    Não, nem pense nisso, Drogo, agora chega de atormentar-se, o que importa já está feito. Mesmo se o assaltarem as dores, mesmo se não houver mais as músicas para consolá-lo e, ao contrário dessa belíssima noite, vierem névoas fétidas, tudo será o mesmo. O que importa já foi feito, não podem mais enganá-lo.
    O quarto está repleto de escuridão, somente com muito custo pode-se enxergar a brancura da cama, todo o resto é negro. Daqui a pouco deverá surgir a lua.
    Terá tempo, Drogo, de vê-la, ou terá que partir antes? A porta do quarto palpita com um leve estalo. Quem sabe é um sopro de vento, um simples redemoinho de ar dessas inquietas noites de primavera. Quem sabe, ao contrário, tenha sido ela a entrar, com passo silencioso, e agora esteja se aproximando da poltrona de Drogo. Fazendo força, Giovanni endireita um pouco o peito, ajeita com a mão o colete do uniforme, olha ainda pela janela, um brevíssimo olhar para sua última porção de estrelas. Em seguida, no escuro, embora ninguém o veja, sorri.


(BUZZATI, Dino. O Deserto dos Tártaros. Traduzido por Aurora Fornoni Bernardini
e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2017, pág 171).

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...