quarta-feira, 1 de junho de 2022

A chegada dos tártaros

 


   Dino Buzzati (1906-1972) colheu da rotina insípida de seu trabalho uma ideia de romance. A história de Giovanni Drogo, jovem militar convocado a servir numa remota fortaleza à beira do deserto, diluía em prosa os sentimentos de Buzzati: em O Deserto dos Tártaros, de 1940, Drogo e seus colegas são ordenados a aguardar, dia e noite, o ataque dos inimigos; ocorre que os dias e as noites se vão, e os tártaros nunca aparecem, tornando a diligência do nosso herói um mergulho existencial no tempo perdido, na solidão e no desencanto.
    O desfecho é tragicamente inevitável: Drogo, tendo enfrentado uma espera vã durante toda a vida, morre. Mas seus últimos sentimentos traduzem-se num sorriso secreto – e eis a beleza da obra. É como se Drogo, velho e solitário, vencesse a frustração que tanto lhe havia aferroado a alma. Ecoo as palavras de Antonio Candido:
    O começo diz abertamente que Giovanni Drogo não tinha estima por si mesmo. Ora, o fim consiste na aquisição dessa autoestima que lhe faltava. Durante a vida inteira ele esperou o momento que permitiria uma espécie de revelação do seu ser, de maneira que os outros pudessem reconhecer o seu valor, o que o levaria a reconhecê-lo ele próprio. Mas aqui surge a contradição suprema, pois esse momento acaba sendo o da morte. Portanto, é ela que define o seu ser e lhe dá a oportunidade de encontrar justificativa para a própria vida. De algum modo, uma afirmação por meio da suprema negação. [...] A morte coletiva e teatral dos sonhos militares, desejada como coroamento da vida, cede lugar à glória intransferível da morte solitária, sem testemunhas e sem ação em torno, significando apenas pela sua própria força. E nós lembramos Montaigne, quando diz que ‘a firmeza na morte é sem dúvida a ação mais notável da vida’.
    Talvez o gesto terminal de Drogo signifique que, intimamente, os tártaros finalmente chegaram.


   Mas depois veio-lhe à mente: e se tudo fosse um engano? E se sua coragem não passasse de embriaguez? Se isso se devesse apenas ao maravilhoso crepúsculo, ao ar perfumado, à pausa das dores físicas, às canções ao piano lá embaixo? E se dentro de alguns minutos, dentro de uma hora, ele precisasse voltar a ser o Drogo de antes, fraco e vencido?
    Não, nem pense nisso, Drogo, agora chega de atormentar-se, o que importa já está feito. Mesmo se o assaltarem as dores, mesmo se não houver mais as músicas para consolá-lo e, ao contrário dessa belíssima noite, vierem névoas fétidas, tudo será o mesmo. O que importa já foi feito, não podem mais enganá-lo.
    O quarto está repleto de escuridão, somente com muito custo pode-se enxergar a brancura da cama, todo o resto é negro. Daqui a pouco deverá surgir a lua.
    Terá tempo, Drogo, de vê-la, ou terá que partir antes? A porta do quarto palpita com um leve estalo. Quem sabe é um sopro de vento, um simples redemoinho de ar dessas inquietas noites de primavera. Quem sabe, ao contrário, tenha sido ela a entrar, com passo silencioso, e agora esteja se aproximando da poltrona de Drogo. Fazendo força, Giovanni endireita um pouco o peito, ajeita com a mão o colete do uniforme, olha ainda pela janela, um brevíssimo olhar para sua última porção de estrelas. Em seguida, no escuro, embora ninguém o veja, sorri.


(BUZZATI, Dino. O Deserto dos Tártaros. Traduzido por Aurora Fornoni Bernardini
e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2017, pág 171).

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