quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Paul Celan: Corona

 

A poesia do franco-romeno judeu Paul Celan (1920-1970), um dos autores a quem mais admiro, costuma resistir a leituras imediatistas: hermético, Celan tece versos fechados, autorreferentes e, por vezes, quase ininteligíveis. Auxilia-nos saber que, entre lembranças do holocausto, crises familiares e episódios de depressão profunda, o poeta renunciou à vida saltando irremediavelmente ao Rio Sena, em Paris.

Como Celan, atravessamos, hoje, tempos sombrios. Ainda assim, seguimos: viajamos, lemos poemas, somos amigos do outono, ensinamos o tempo a caminhar. E a obra de Celan continua a viver e irradiar beleza – uma beleza singular que expõe os vários contornos de uma consciência muito sensível; uma beleza que ecoa, simultaneamente, ausências e, como neste Corona, esperanças.



Corona


Autumn eats its leaf out of my hand: we are friends.

From the nuts we shell time and we teach it to walk:

then time returns to the shell.


In the mirror it’s Sunday,

in dream there is room for sleeping,

our mouths speak the truth.


My eye moves down to the sex of my loved one:

we look at each other,

we exchange dark words,

we love each other like poppy and recollection,

we sleep like wine in the conches,

like the sea in the moon’s blood ray.


We stand by the window embracing, and people look up from the street:

it is time they knew!

It is time the stone made an effort to flower,

time unrest had a beating heart.

It is time it were time.


It is time. 


(traduzido do alemão por Michael Hamburger)


––


Corona


O outono come a folha da minha mão: somos amigos.

Descascamos o tempo e o ensinamos a andar:

e o tempo retorna à casca.


No espelho é domingo,

no sonho podemos dormir,

nossa boca fala a verdade.


Meus olhos descem até o sexo da amada:

nós nos olhamos,

trocamos palavras negras,

amamo-nos como papoula e memória,

dormimos como vinho nas conchas,

como o mar sob o raio sangrento da lua.


Ficamos abraçados diante da janela e as pessoas nos olham da rua:

é tempo de saberem!

É tempo de a pedra querer florescer,

tempo de pulsar o coração da inquietude.

É tempo de ser tempo.


É tempo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Safo de Lesbos: alguns fragmentos

Sappho Inspired by Love , de Angelica Kauffman (1775) Dos nove livros que Safo de Lesbos (630-570 a.C.) provavelmente compôs, apenas um poem...