quarta-feira, 22 de março de 2023

José Régio: Cântico Negro



   Há certos poemas que bem poderiam ter sido escritos por mim, tamanha é a maestria com que expressam aquilo que sou e sinto. Este de José Régio (1901-1969) constitui um belíssimo exemplo: ele trata da ânsia de caminhar por onde eu queira, e não na direção em que me ordenam.
     Muito embora a escolha do caminho alternativo possa levar-nos aonde não esperamos chegar, nossas deliberações devem sempre seguir a trilha que consideramos correta, mesmo que desafiemos os costumes e convenções do status quo. É essa postura diante do mundo, bem explorada por Régio, que nos torna mais únicos enquanto indivíduos.


Cântico Negro

“Vem por aqui!” – dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “Vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade,
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se às coisas que pergunto (em vão) ninguém responde,
Por que me dizeis vós: “Vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada.
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil...
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura:
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios!

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “Vem por aqui!”
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou.
Não sei para onde vou.
– Sei que não vou por aí!


(José Régio et al. Poetas Novos de Portugal
Rio de Janeiro: Dois Mundos, 1944, pág. 174)

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