quarta-feira, 29 de março de 2023

Plutarco: Alexandre e Diógenes

 

Alexander and Diogenes (Nicolas-André Monsiau, 1818)

    Plutarco (46-120) assim nos narra o lendário encontro de Alexandre, o Grande, com Diógenes de Sinope, em 338 a.C.:

    Following a conference held by the Greeks at the Isthmus, at which they decided to join Alexander’s expedition against Persia, he was formally put in charge. A great many people, not only politicians, but philosophers too, gained audiences with him to tender their congratulations, and he hoped that Diogenes of Sinope, who was living in Corinth at the time, would follow their example.
   Diogenes, however, continued to live an untroubled life in Craneium, without paying the slightest attention to Alexander, so Alexander paid him a visit and found him relaxing in the sun. Diogenes raised himself up a bit when the huge crowd of people appeared and looked at Alexander, who greeted him and asked him if there was anything he wanted. ‘Yes,’ replied Diogenes, ‘move aside a little, out of my sunlight.’ The story goes that Alexander was so struck at being held in such contempt, and so impressed with the man's haughty detachment, that while the members of his retinue were ridiculing and mocking Diogenes as they left, he said, ‘But as for me, if I were not Alexander, I would be Diogenes.’

    Alexandre, tendo os gregos realizado em Istmo uma assembleia geral em que decidiram juntar-se a ele na guerra aos persas, foi eleito comandante da Grécia. E, pois que lá iam felicitá-lo políticos e filósofos, Alexandre achou que Diógenes de Sinopla, que residia ordinariamente em Corinto, também iria visitá-lo.
    Diógenes, todavia, permanecia indiferente no subúrbio de Crânio e não lhe dava importância, então Alexandre foi procurá-lo e encontrou-o deitado, relaxando ao sol. Quando o filósofo percebeu tanta gente em volta de si, levantou-se levemente de seu lugar de repouso e olhou para o rosto de Alexandre, que o saudou e depois lhe perguntou se havia algo que desejasse. “Sim”, respondeu-lhe Diógenes, “quero que te movas um pouco para o lado e saias da frente do meu sol”. Diz-se que o general ficou tão impressionado com o desdém altivo de Diógenes, que, indo-se embora, enquanto seus familiares se riam juntos e zombavam do filósofo, Alexandre lhes afirmou: “Eu, se não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes.”


(Plutarch. Greek Lives. Traduzido por Robin Waterfield.
New York: Oxford University Press, 2009, pág. 322)

quarta-feira, 22 de março de 2023

José Régio: Cântico Negro



   Há certos poemas que bem poderiam ter sido escritos por mim, tamanha é a maestria com que expressam aquilo que sou e sinto. Este de José Régio (1901-1969) constitui um belíssimo exemplo: ele trata da ânsia de caminhar por onde eu queira, e não na direção em que me ordenam.
     Muito embora a escolha do caminho alternativo possa levar-nos aonde não esperamos chegar, nossas deliberações devem sempre seguir a trilha que consideramos correta, mesmo que desafiemos os costumes e convenções do status quo. É essa postura diante do mundo, bem explorada por Régio, que nos torna mais únicos enquanto indivíduos.


Cântico Negro

“Vem por aqui!” – dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “Vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade,
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se às coisas que pergunto (em vão) ninguém responde,
Por que me dizeis vós: “Vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada.
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil...
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura:
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios!

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “Vem por aqui!”
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou.
Não sei para onde vou.
– Sei que não vou por aí!


(José Régio et al. Poetas Novos de Portugal
Rio de Janeiro: Dois Mundos, 1944, pág. 174)

quarta-feira, 15 de março de 2023

Louise Glück: Lamium

 


    No poema a seguir, Louise Glück (1943-) emprega elementos da natureza como metáforas para a iluminação espiritual: o eu lírico, qual um lamium, germina em lugares sombrios, prescindindo de luz alheia e dispensando o calor do sol.
   Sua voz parece dirigir-se a alguém que se consagra à busca de uma verdade particular, aparentemente ignota a nós. “Os seres vivos”, porém, “não requerem / luz na mesma intensidade.” Talvez esse alguém, encontrando enfim a verdade procurada, retire-se e viva como o eu lírico, em sombras, amando “tudo o que é frio”.


LAMIUM

This is how you live when you have a cold heart.
As I do: in shadows, trailing over cool rock,
under the great maple trees.

The sun hardly touches me.
Sometimes I see it in early spring, rising very far away.
Then leaves grow over it, completely hiding it. I feel it
glinting through the leaves, erratic,
like someone hitting the side of a glass with a metal spoon.

Living things don’t all require
light in the same degree. Some of us
make our own light: a silver leaf
like a path no one can use, a shallow
lake of silver in the darkness under the great maples.

But you know this already.
You and the others who think
you live for truth and, by extension, love
all that is cold.



LAMIUM

É assim que vives quando tens um coração frio.
Como eu: nas sombras, rastejando sobre pedras frias,
sob os grandes carvalhos.

O sol quase não me toca.
Às vezes vejo-o no começo da primavera, nascendo bem distante.
Então folhas crescem sobre ele, escondem-no por completo. Sinto-o
brilhar entre as folhas, errático,
como se alguém tocasse um copo de vidro com uma colher de metal.

Os seres vivos não requerem
luz na mesma intensidade. Alguns de nós
fazemos nossa própria luz: uma folha de prata
como um caminho que ninguém pode usar, um lago
raso de prata na escuridão sob os grandes carvalhos.

Mas já sabes disso.
Tu e outros que pensam
que vivem pela verdade e, por extensão, 
amam tudo o que é frio.


(Glück, Louise. Poems 1962-2012
New York: Farrar, Straus and Giroux, pág. 249)

quarta-feira, 8 de março de 2023

César: Alea iacta est

 

Caesar Crossing the Rubicon - Adolphe Yvon (1875)

    Quando regressava da Gália a caminho de Roma, Júlio César (100-44 a.C.) soube que o Senado lhe havia retirado os poderes e lhe ordenava que dispersasse seu exército. Ao invés de obedecer, César cruzou o rio Rubicão, fronteira natural entre o norte da República e suas províncias, e avançou sobre a capital, violando as leis romanas e alterando o curso da história.
   César passou para a eternidade como general brilhante e líder que zelou pela prosperidade de seu povo. Mas seu nome não nos tocaria hoje a memória, tivesse ele dado as costas à audácia própria dos grandes homens, deixando de impor seu peso, desafiar os patrícios e, mais importante do que tudo, cruzar o Rubicão.
    Assim Suetônio nos narra o decisivo momento:

    His lights went out and he lost his way, wandering for some time until, at dawn, he located a guide and found the route on foot, following narrow paths. He caught up with his cohorts at the River Rubicon, which was the boundary of his province, where he paused for a while, thinking over the magnitude of what he was planning, then, turning to his closest companions, he said: “Even now we can still turn back. But once we have crossed that little bridge, everything must be decided by arms.”
    As he paused, the following portent occurred. A being of splendid size and beauty suddenly appeared, sitting close by, and playing music on a reed. A large number of shepherds hurried to listen to him and even some of the soldiers left their posts to come, trumpeters among them. From one of these, the apparition seized a trumpet, leapt down to the river, and with a huge blast sounded the call to arms and crossed over to the other bank. Then said Caesar: “Let us go where the gods have shown us the way and the injustice of our enemies calls us. The die is cast.”

    Extinta a chama das tochas, perdeu-se e, por um tempo, vagou sem rumo. Ao nascer do sol, César caminhou a pé por veredas estreitas e, às margens do Rubicão, que marcava a fronteira com sua província, reuniu-se às suas coortes. Ali ficou por alguns instantes ponderando a magnitude dos seus planos, e então voltou-se aos que o acompanhavam e lhes disse: “Agora ainda podemos recuar. Mas, se passarmos aquela pequena ponte, cabe à força das armas decidir o resto.”
    Vacilava ainda quando lhe surgiu a seguinte visão: um rapaz de corpo e beleza singulares apareceu por perto, sentando-se a tocar uma flauta pastoril. Além dos pastores, numerosos soldados dos postos mais vizinhos apressaram-se para ouvi-lo, entre os quais alguns corneteiros. Ao vê-los, o jovem músico arrancou o clarim de um deles, atirou-se ao rio e, na margem oposta, entoou o brado da guerra. César afirmou, então: “Vamos para onde nos chamam os prodígios dos deuses e a perversidade dos nossos inimigos. A sorte está lançada [Alea iacta est].”

    Que nos fique de exemplo para quando tivermos de atravessar, crucialmente, os nossos próprios Rubicões.


(Suetonius. Lives of the Caesars
Traduzido por Catharine Edwards. New York: 2000, págs. 16 – 17)

quarta-feira, 1 de março de 2023

Thoreau: viver deliberadamente

 


    Durante anos, Henry David Thoreau (1817-1862), profundamente insatisfeito com a rotina urbana, alimentou a vontade de morar sozinho nos bosques, e vários elementos se compuseram para que decidisse, em 1845, ir às margens do lago Walden, em Massachusetts. Lá, Thoreau construiu uma casinha de madeira e, apesar de inexperiente como agricultor, tentou a autossuficiência, plantando batatas e providenciando a própria alimentação.
    As diversas notas que Thoreau escreveu enquanto habitava os entornos de Walden formam mais do que o simples relato de um isolamento. Thoreau nos convida a refletir sobre um modo de viver em que a felicidade não se traduz na posse de bens materiais, mas apenas na plenitude interior do indivíduo: desprendido de perturbações vãs e desejos mesquinhos, o homem passa a fortalecer-se do tutano essencial da vida, a apreciar por sua experiência particular a beleza simples que alumia o mundo.


    I went to the woods because I wished to live deliberately, to front only the essential facts of life, and see if I could not learn what it had to teach, and not, when I came to die, discover that I had not lived. I did not wish to live what was not life, living is so dear; nor did I wish to practise resignation, unless it was quite necessary. I wanted to live deep and suck out all the marrow of life, to live so sturdily and Spartan-like as to put to rout all that was not life, to cut a broad swath and shave close, to drive life into a corner, and reduce it to its lowest terms, and, if it proved to be mean, why then to get the whole and genuine meanness of it, and publish its meanness to the world; or if it were sublime, to know it by experience, and be able to give a true account of it in my next excursion.

   Eu fui para os bosques porque queria viver deliberadamente, encarar apenas os fatos essenciais da vida e saber se podia aprender o que ela tinha a me ensinar – e não descobrir, à hora da morte, que não vivi. Eu não queria viver o que não era vida, pois é tão belo estar vivo, e tampouco queria praticar a resignação, a menos que fosse totalmente necessária. Eu queria viver intensamente e sugar todo o tutano da vida, viver tão vigorosa e espartanamente a ponto de aniquilar tudo aquilo que não fosse vida, deixando o espaço limpo e raso; eu queria encurralar a vida e reduzi-la a seus aspectos mais primitivos – e, se a vida se revelasse mesquinha, queria então adentrar-me em sua total e genuína mesquinhez e divulgá-la ao mundo; ou, se fosse sublime, sabê-lo por experiência própria e poder produzir um verdadeiro relato sobre ela em minha próxima excursão.

(THOREAU, Henry David. Walden, A Fully Annotated Edition.
London: Yale University Press, 2004, pág. 88)


Walden Pond at sunrise. Photograph: Gabriel Negron/Alamy.


Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...