quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Dylan Thomas: resistir à noite

 


    Soam-nos muito profundos os famosos versos a seguir do galês Dylan Thomas (1914-1953), por tratarem da efemeridade da existência humana. O pai está morrendo; o filho, poeta, clama-lhe que não sucumba pacificamente ao derradeiro ocaso: argumenta ao seu velho que os homens sábios, os bons, os loucos e os graves resistem a aceitar a morte, mesmo que sua noite lhes pareça acolhedora.
   Tudo há de chegar ao fim – poemas, afetos, discórdias, vida. Ainda assim, Thomas nos instiga a alimentar sempre a chama de nossas brasas, para que fulgurem até o último suspiro...


Do not go gentle into that good night

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding Sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.



Não entres nessa noite acolhedora com doçura
(tradução de Ivan Junqueira)

Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.

Embora os sábios, ao morrer, saibam que a treva lhes perdura,
Porque suas palavras não garfaram a centelha esguia,
Eles não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os bons que, após o último aceno, choram pela alvura
Com que seus frágeis atos bailariam numa verde baía
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea altura
E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua travessia
Não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os graves, em seu fim, ao ver com um olhar que os transfigura
Quanto a retina cega, qual fugaz meteoro, se alegraria,
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

E a ti, meu pai, te imploro agora, lá na cúpula obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.


(Dylan Thomas. The Collected Poems of Dylan Thomas, The Centenary Edition. 
Grã-Bretanha: Weidenfekd & Nicolson, 2016, pág. 234.
A tradução de Ivan Junqueira para o português pode ser encontrada neste endereço)

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Ernest Hemingway: matar estrelas

 


    As páginas do célebre O Velho e o Mar, de 1952, tratam de muitos temas que nos devem preocupar como leitores e pessoas.
    Ao fisgar, depois de três meses estéreis, um agulhão maior que seu humilde barco, o velho Santiago demonstra a capacidade do espírito humano para vencer adversidades: Santiago testa os próprios limites mentais enquanto, com as mãos ensanguentadas, tenta puxar a si o bravo peixe, lutar contra o cansaço que lhe aflige os ossos e manter-se firme diante da solidão azul. 
    Ernest Hemingway (1899-1961) era sabidamente fascinado por histórias de homens que superam os desafios da natureza. Hemingway une aqui sua famosa linguagem seca a agudíssimas meditações – e, à maneira de um pescador, ora recolhe, ora dá linha à sua narrativa.

   Já estava escuro, pois em setembro a noite cai muito depressa, logo a seguir ao pôr-do-sol. Continuava encostado à madeira da proa e descansava tanto quanto lhe era possível. As primeiras estrelas mostravam-se no céu. Não sabia bem os nomes das estrelas, mas as conhecia e sabia que dentro de pouco tempo apareceriam todas e teria o conforto da companhia daquelas amigas tão distantes.
    – O peixe também é meu amigo – disse em voz alta. – Nunca vi ou ouvi falar de um peixe desse tamanho. Mas tenho de matá-lo. É bom saber que não tenho de matar as estrelas.
    “Imagine o que seria de um homem se tivesse de matar a lua todos os dias”, pensou o velho. “A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de matar o sol. Nascemos com sorte.”
    Depois teve pena do enorme peixe que não tinha nada para comer, mas a sua determinação de matá-lo jamais arrefeceu, mesmo naquele momento de compaixão. “Quantas pessoas ele irá alimentar? Mas serão merecedoras de um peixe assim? Não, claro que não. Ninguém merece comê-lo, tão grande a sua dignidade e tão belo o seu modo de agir.”
     “Já não compreendo estas coisas”, pensou ele. “Mas é bom que não tenhamos de tentar matar a lua, o sol ou as estrelas. Já é ruim o bastante viver no mar e tentar matar os nossos verdadeiros irmãos.”


(Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução de Fernando Castro Ferro. 
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 200, págs. 76 – 7)

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Marco Aurélio: efemeridade e sabedoria

 


    Um dos aspectos mais interessantes das Meditações é o fato de Marco Aurélio (121-180) não escrever como se já estivesse em posse da retidão estoica a que aspirava, e sim enquanto quem trilha um longo processo de autorrealização. O imperador, falando a si mesmo, constantemente se admoesta, repreende-se e se corrige; cambaleia, mas jamais se rende.
    É isto, afinal, o que ele buscou: manter-se imperturbável diante das vicissitudes da vida, senhor de suas emoções, sem medo de sobrevir-lhe a morte, compreendendo a finitude de tudo quanto se passa no mundo e dentro de nós.


    A duração da vida humana é um mero instante; o homem, um fluxo; sua percepção, turvada; seu corpo, sujeito à velhice; sua alma, inquieta; sua sorte, imprevisível; sua glória, incerta. Em suma: tudo o que é terreno passa como um rio, e o que pertence à alma é sonho e névoa, e a vida é guerra e exílio, e a única fama duradoura é o esquecimento.
   O que, então, pode nos conduzir em nossa jornada? Uma coisa, e uma coisa só: a filosofia. Ela consiste em preservar nosso espírito inviolado, superior aos prazeres e às dores, jamais agindo sem propósito, sinceridade ou retidão, e independente de como comportam-se os outros; aceitando as coisas que lhe acontecem e, principalmente, aguardando a morte com a feliz convicção de que ela nada é além da dissolução de elementos que compõem cada ser vivo. E, se os elementos não temem a constante transformação, por que deveríamos recear sua mudança e sua dissolução? Isto está em conformidade com a natureza, e nada de mal pode estar em conformidade com a natureza. (2.17)

    Deixarás distrair-te a vanglória? Vê como tudo é tão rapidamente esquecido; volta a atenção para a infinita extensão do tempo, para a vanidade dos aplausos, para a irreflexão dos que parecem te elogiar, para a pequenez de tudo isso. A terra não passa de um mero ponto no espaço vazio, e é minúsculo o cantinho que dela ocupamos: quantos são e quem são os que te hão de louvar?
   Lembra-te, então, de recolher-te a ti mesmo, sem agonias ou apreensões. Sê teu próprio mestre, observa as coisas como um varão, como um humano, como um romano, como um mortal. (4.3)

    Tudo é efêmero: a memória e o objeto da memória. (4.35)

    Ao amanhecer, quando de má vontade e preguiçosamente te despertas, recorre a este pensamento: “Desperto-me para cumprir a tarefa própria de homem. Irei, então, continuar insatisfeito, se me encaminho para fazer aquilo que justifica minha existência? Ou nasci para me enrolar em cobertores e gozar do conforto?” “Mas isto é mais agradável”. Nasceste, pois, para o prazer, para a passividade, e não para a ação? Não vês que as plantas, os pássaros, as formigas, as aranhas e as abelhas cumprem sua função própria, contribuindo a seu modo para a ordem do mundo? E tu relutas em fazer o que é próprio do homem, em perseguir dedicadamente o que está de acordo com a tua natureza. “Mas é necessário também descansar”. Sim, concordo; é de fato necessário. Mas a natureza delimitou limites para o descanso, como também para a comida e para a bebida – e apesar disso tu te excedes, vais além do que é suficiente. Em tuas ações, todavia, tu acabas assim ficando aquém de tuas capacidades. (5.1)

    Queixas-te: “Não é admirável o meu intelecto”. Sim, mas existem outras muitas virtudes que a ti pertencem e que tu podes alimentar: integridade, dignidade, laboriosidade, resignação, temperança, austeridade, gentileza, independência, simplicidade, discrição, altruísmo. Não percebes de quantas qualidades és capaz de dispor já, sem qualquer desculpa de falta de talento ou aptidão? (5.5)

    O que Alexandre, César e Pompeu foram em comparação com Heráclito, Sócrates e Diógenes? Estes compreenderam as causas e as matérias da realidade, e seus princípios eram autossuficientes; aqueles, todavia, foram escravos das próprias ambições. (8.3)

   Não desprezes a morte; acolhe-a enquanto uma das coisas que a natureza quer. Nossa decomposição é um processo natural, como a fecundação, a gravidez, o parto, a juventude, o crescimento, a maturidade, a velhice, o aparecimento dos dentes, da barba e dos cabelos brancos. Cumpre-nos, portanto, aceitar a chegada da morte sem hostilidade, soberba ou desdém; cumpre-nos aceitá-la como nada mais que um fenômeno da natureza. (9.3)

   Que pequena é a fração do infinito e insondável tempo destinada a cada um de nós, pois somos logo dissipados pela eternidade... E que pequena é a nossa parte de toda a substância universal... E que pequeno é o cantinho da terra sobre o qual rastejamos... Refletindo sobre tudo isso, nada consideres grande e atribui importância somente a agir como a tua natureza te conduz, aceitando sempre aquilo que o universo traz a ti. (12.32)

Em Roma (7/24)

    Nota: para traduzir esses excertos, baseei-me principalmente em duas traduções já existentes: a de Martin Hammond (Penguin Classics, 2006) e a de Jaime Bruna (Cultrix, 1989). Pautei-me por questões de estética e, sobretudo, de clareza.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Machado de Assis: Uma Criatura

 


    Nos oito tercetos e no arremate que compõem Uma Criatura, de 1901, Machado de Assis (1839-1908) põe em evidência a sua celebrada ambiguidade: o eu lírico nos fala de uma “criatura antiga e formidável”, que “está em toda obra” e cuja força reside em crestar o seio da flor e corromper-lhe o fruto – deixando-nos a entender que se trata da Morte, quando, na verdade, a referida figura é a Vida.
    Basta-nos, de fato, retomar as dualidades do poema, como “os vales e as montanhas”, “o colibri e o verme”, “o belo e o monstruoso”, para nos lembrarmos de que somente a Vida pode conter elementos opostos, e nunca a Morte: a Morte é inequívoca, inelutável e irreversível; a Vida, porém, é faminta, contraditória e feroz, guarda o início e o fim de tudo.


UMA CRIATURA

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira do abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto,
E é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida;
E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.


(Machado de Assis. Obra Completa, Volume III.
Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1962, Pág. 151)

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

W. H. Auden: A solitária nata

 


    Em Their lonely betters (A solitária nata), de 1950, Wystan Hugh Auden (1907-1973) celebra a simplicidade dos seres não falantes. Pois os artifícios retóricos, que tanto parecem engrandecer-nos, também nos flagelam imensamente: é através da linguagem que nos mentimos e nos ofendemos, que mal-entendidos têm vez e que promessas são seladas e quebradas:
    Talvez nos convenha aprender de Auden que as palavras, em última instância, não podem expressar aquilo que realmente sentimos. E que, assim, o mundo se enriquece com quem não sabe manejá-las: tordos, flores, vegetais, aves.


Their lonely betters

As I listened from a beach-chair in the shade
To all the noises that my garden made,
It seemed to me only proper that words
Should be withheld from vegetables and birds.

A robin with no Christian name ran through
The Robin-Anthem which was all it knew,
And rustling flowers for some third party waited
To say which pairs, if any, should get mated.

Not one of them was capable of lying,
There was not one which knew that it was dying
Or could have with a rhythm or a rhyme
Assumed responsibility for time.

Let them leave language to their lonely betters
Who count some days and long for certain letters;
We, too, make noises when we laugh or weep:
Words are for those with promises to keep.


A solitária nata

Eu ouvia da sombra, numa cadeira de praia,
A gama de ruídos que por meu jardim se espraia
E julgava de toda conveniência se isentasse
Do dom da palavra tanto os vegetais como as aves.

Um tordo sem nome de batismo repetia
O Hino Tordo, que era tudo quanto conhecia.
Por terceiro esperavam as flores roçagantes
Pra dizer-lhes, sendo o acaso, quais os pares dos amantes.

Não seria, nenhum deles, capaz de mentir;
Tampouco havia ali quem sentisse a morte vir-
-Lhe ou, que, com ritmo ou rima, pudesse dar tento
Da sua responsabilidade pelo tempo.

Ficasse a linguagem para a solitária nata
Dos que contam os dias e esperam certas cartas.
Ao rir e ao chorar, nós também fazemos ruídos.
Palavras são só para os que estão comprometidos.


(AUDEN, W.H. Poemas. Traduzido por João Moura Jr.
e José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, págs. 140 – 141).

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...