quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Marco Aurélio: efemeridade e sabedoria

 


    Um dos aspectos mais interessantes das Meditações é o fato de Marco Aurélio (121-180) não escrever como se já estivesse em posse da retidão estoica a que aspirava, e sim enquanto quem trilha um longo processo de autorrealização. O imperador, falando a si mesmo, constantemente se admoesta, repreende-se e se corrige; cambaleia, mas jamais se rende.
    É isto, afinal, o que ele buscou: manter-se imperturbável diante das vicissitudes da vida, senhor de suas emoções, sem medo de sobrevir-lhe a morte, compreendendo a finitude de tudo quanto se passa no mundo e dentro de nós.


    A duração da vida humana é um mero instante; o homem, um fluxo; sua percepção, turvada; seu corpo, sujeito à velhice; sua alma, inquieta; sua sorte, imprevisível; sua glória, incerta. Em suma: tudo o que é terreno passa como um rio, e o que pertence à alma é sonho e névoa, e a vida é guerra e exílio, e a única fama duradoura é o esquecimento.
   O que, então, pode nos conduzir em nossa jornada? Uma coisa, e uma coisa só: a filosofia. Ela consiste em preservar nosso espírito inviolado, superior aos prazeres e às dores, jamais agindo sem propósito, sinceridade ou retidão, e independente de como comportam-se os outros; aceitando as coisas que lhe acontecem e, principalmente, aguardando a morte com a feliz convicção de que ela nada é além da dissolução de elementos que compõem cada ser vivo. E, se os elementos não temem a constante transformação, por que deveríamos recear sua mudança e sua dissolução? Isto está em conformidade com a natureza, e nada de mal pode estar em conformidade com a natureza. (2.17)

    Deixarás distrair-te a vanglória? Vê como tudo é tão rapidamente esquecido; volta a atenção para a infinita extensão do tempo, para a vanidade dos aplausos, para a irreflexão dos que parecem te elogiar, para a pequenez de tudo isso. A terra não passa de um mero ponto no espaço vazio, e é minúsculo o cantinho que dela ocupamos: quantos são e quem são os que te hão de louvar?
   Lembra-te, então, de recolher-te a ti mesmo, sem agonias ou apreensões. Sê teu próprio mestre, observa as coisas como um varão, como um humano, como um romano, como um mortal. (4.3)

    Tudo é efêmero: a memória e o objeto da memória. (4.35)

    Ao amanhecer, quando de má vontade e preguiçosamente te despertas, recorre a este pensamento: “Desperto-me para cumprir a tarefa própria de homem. Irei, então, continuar insatisfeito, se me encaminho para fazer aquilo que justifica minha existência? Ou nasci para me enrolar em cobertores e gozar do conforto?” “Mas isto é mais agradável”. Nasceste, pois, para o prazer, para a passividade, e não para a ação? Não vês que as plantas, os pássaros, as formigas, as aranhas e as abelhas cumprem sua função própria, contribuindo a seu modo para a ordem do mundo? E tu relutas em fazer o que é próprio do homem, em perseguir dedicadamente o que está de acordo com a tua natureza. “Mas é necessário também descansar”. Sim, concordo; é de fato necessário. Mas a natureza delimitou limites para o descanso, como também para a comida e para a bebida – e apesar disso tu te excedes, vais além do que é suficiente. Em tuas ações, todavia, tu acabas assim ficando aquém de tuas capacidades. (5.1)

    Queixas-te: “Não é admirável o meu intelecto”. Sim, mas existem outras muitas virtudes que a ti pertencem e que tu podes alimentar: integridade, dignidade, laboriosidade, resignação, temperança, austeridade, gentileza, independência, simplicidade, discrição, altruísmo. Não percebes de quantas qualidades és capaz de dispor já, sem qualquer desculpa de falta de talento ou aptidão? (5.5)

    O que Alexandre, César e Pompeu foram em comparação com Heráclito, Sócrates e Diógenes? Estes compreenderam as causas e as matérias da realidade, e seus princípios eram autossuficientes; aqueles, todavia, foram escravos das próprias ambições. (8.3)

   Não desprezes a morte; acolhe-a enquanto uma das coisas que a natureza quer. Nossa decomposição é um processo natural, como a fecundação, a gravidez, o parto, a juventude, o crescimento, a maturidade, a velhice, o aparecimento dos dentes, da barba e dos cabelos brancos. Cumpre-nos, portanto, aceitar a chegada da morte sem hostilidade, soberba ou desdém; cumpre-nos aceitá-la como nada mais que um fenômeno da natureza. (9.3)

   Que pequena é a fração do infinito e insondável tempo destinada a cada um de nós, pois somos logo dissipados pela eternidade... E que pequena é a nossa parte de toda a substância universal... E que pequeno é o cantinho da terra sobre o qual rastejamos... Refletindo sobre tudo isso, nada consideres grande e atribui importância somente a agir como a tua natureza te conduz, aceitando sempre aquilo que o universo traz a ti. (12.32)

Em Roma (7/24)

    Nota: para traduzir esses excertos, baseei-me principalmente em duas traduções já existentes: a de Martin Hammond (Penguin Classics, 2006) e a de Jaime Bruna (Cultrix, 1989). Pautei-me por questões de estética e, sobretudo, de clareza.

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