Nos oito tercetos e no arremate que compõem Uma Criatura, de 1901, Machado de Assis (1839-1908) põe em evidência a sua celebrada ambiguidade: o eu lírico nos fala de uma “criatura antiga e formidável”, que “está em toda obra” e cuja força reside em crestar o seio da flor e corromper-lhe o fruto – deixando-nos a entender que se trata da Morte, quando, na verdade, a referida figura é a Vida.
Basta-nos, de fato, retomar as dualidades do poema, como “os vales e as montanhas”, “o colibri e o verme”, “o belo e o monstruoso”, para nos lembrarmos de que somente a Vida pode conter elementos opostos, e nunca a Morte: a Morte é inequívoca, inelutável e irreversível; a Vida, porém, é faminta, contraditória e feroz, guarda o início e o fim de tudo.
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira do abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto,
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida;
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
(Machado de Assis. Obra Completa, Volume III.
Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1962, Pág. 151)
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