quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Ernest Hemingway: matar estrelas

 


    As páginas do célebre O Velho e o Mar, de 1952, tratam de muitos temas que nos devem preocupar como leitores e pessoas.
    Ao fisgar, depois de três meses estéreis, um agulhão maior que seu humilde barco, o velho Santiago demonstra a capacidade do espírito humano para vencer adversidades: Santiago testa os próprios limites mentais enquanto, com as mãos ensanguentadas, tenta puxar a si o bravo peixe, lutar contra o cansaço que lhe aflige os ossos e manter-se firme diante da solidão azul. 
    Ernest Hemingway (1899-1961) era sabidamente fascinado por histórias de homens que superam os desafios da natureza. Hemingway une aqui sua famosa linguagem seca a agudíssimas meditações – e, à maneira de um pescador, ora recolhe, ora dá linha à sua narrativa.

   Já estava escuro, pois em setembro a noite cai muito depressa, logo a seguir ao pôr-do-sol. Continuava encostado à madeira da proa e descansava tanto quanto lhe era possível. As primeiras estrelas mostravam-se no céu. Não sabia bem os nomes das estrelas, mas as conhecia e sabia que dentro de pouco tempo apareceriam todas e teria o conforto da companhia daquelas amigas tão distantes.
    – O peixe também é meu amigo – disse em voz alta. – Nunca vi ou ouvi falar de um peixe desse tamanho. Mas tenho de matá-lo. É bom saber que não tenho de matar as estrelas.
    “Imagine o que seria de um homem se tivesse de matar a lua todos os dias”, pensou o velho. “A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de matar o sol. Nascemos com sorte.”
    Depois teve pena do enorme peixe que não tinha nada para comer, mas a sua determinação de matá-lo jamais arrefeceu, mesmo naquele momento de compaixão. “Quantas pessoas ele irá alimentar? Mas serão merecedoras de um peixe assim? Não, claro que não. Ninguém merece comê-lo, tão grande a sua dignidade e tão belo o seu modo de agir.”
     “Já não compreendo estas coisas”, pensou ele. “Mas é bom que não tenhamos de tentar matar a lua, o sol ou as estrelas. Já é ruim o bastante viver no mar e tentar matar os nossos verdadeiros irmãos.”


(Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução de Fernando Castro Ferro. 
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 200, págs. 76 – 7)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Safo de Lesbos: alguns fragmentos

Sappho Inspired by Love , de Angelica Kauffman (1775) Dos nove livros que Safo de Lesbos (630-570 a.C.) provavelmente compôs, apenas um poem...