quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Bertolt Brecht: Aos que vão nascer

 


    Bertolt Brecht (1898-1956) sabia compor versos sobre a beleza do amor e o calor da amizade, mas falava também do desamparo, do exílio e da derrota. Em Aos que vão nascer, de 1939, ele escreve: “Ah, e nós / Que queríamos preparar o chão para o amor / Não pudemos nós mesmos ser amigos.”
  Brecht demonstra a engenhosidade crítica de um homem à frente de seu tempo: nós ainda hoje aprendemos dele grandes lições acerca dos problemas do mundo. E certamente aqueles que vão nascer também as aprenderão.


AOS QUE VÃO NASCER

1

É verdade, eu vivo em tempos negros.
Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas
Indica insensibilidade. Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia.

Que tempos são esses, em que
Falar de árvores é quase um crime
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Aquele que atravessa a rua tranquilo
Não está mais ao alcance de seus amigos
Necessitados?

Sim, ainda ganho meu sustento
Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço
Me dá direito a comer a fartar.
Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou perdido.)

As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem!
Mas como posso comer e beber, se
Tiro o que como ao que tem fome
E meu copo d’água falta ao que tem sede?
E no entanto eu como e bebo.

Eu bem gostaria de ser sábio.
Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria:
Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve
Levar sem medo
E passar sem violência
Pagar o mal com o bem
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los
Isto é sábio.
Nada disso sei fazer:
É verdade, eu vivo em tempos negros.

2

À cidade cheguei em tempo de desordem
Quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
E me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

A comida comi entre as batalhas
Deitei-me para dormir entre os assassinos
Do amor cuidei displicente
E impaciente contemplei a natureza.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As ruas de meu tempo conduziam ao pântano.
A linguagem denunciou-me ao carrasco.
Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima
Estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As forças eram mínimas. A meta
Estava bem distante.
Era bem visível, embora para mim
Quase inatingível.
Assim passou o tempo
Que nesta terra me foi dado.

3

Vocês, que emergirão do dilúvio
Em que afundamos,
Pensem
Quando falarem de nossas fraquezas
Também nos tempos negros
De que escaparam.

Andávamos então, trocando de países como de sandálias
Através das lutas de classes, desesperados
Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.

Entretanto sabemos:
Também o ódio à baixeza
Deforma as feições.
Também a ira pela injustiça
Torna a voz rouca. Ah, e nós

Que queríamos preparar o chão para o amor
Não pudemos nós mesmos ser amigos.
Mas vocês, quando chegar o momento
De o homem ser parceiro do homem,
Pensem em nós
Com simpatia.


(Bertolt Brecht. Poemas, 1913 – 1956
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2000, págs. 212 – 214)

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Cinco poemas de Eugenio Montale

 


    A poesia de Eugenio Montale (1896-1981) parece representar um anseio de expressão que, sem se satisfazer, acaba nutrindo o discurso interior. Montale atravessou um tempo ferido por guerras, tensões e problemas sociais; sua voz, então, fica refém da ausência de solidez da realidade, e as alegorias que não oferecem respostas conclusivas tornam-se a representação de um mundo particular.
    Mas Montale também consegue capturar instantes de beleza. “Do bem não soube, exceto da magia / que emana da divina Indiferença: / como uma estátua assim na sonolência / do meio-dia, e a nuvem, e o falcão no ar alçado”, diz-nos uma de suas estrofes. Sua poesia, afinal, talvez seja isto mesmo: uma tentativa de compreender as emoções que nos acometem entre desassossegos existenciais e íntimos momentos de felicidade.


*

Sestear entre pálido e absorto
junto a um ardente muro de horto;
ouvir por entre sarças e estrepes
pios de melros, silvos de serpes.

Entre as fendas do solo ou pelo coentro
espiar filas de rubras formigas
que ora se espalham, ora se concentram
em cima de minúsculas vigas.

Observar entre a fronde a palpitar
ao longe as escamas do mar
enquanto se erguem os trêmulos rascos
das cigarras de altos penhascos.

E andando ao sol que nos baralha
a vista, ver – triste maravilha –
como é toda esta vida e sua estafa
ao longo deste muro que rebrilha
com seus cacos agudos de garrafa.


*

Não raro tive o mal da vida ao lado:
era o arroio arrochado que gorgolha,
ou era o esturricar-se de uma folha
ardida, ora o cavalo esquartejado.

Do bem não soube, exceto da magia
que emana da divina Indiferença:
como uma estátua assim na sonolência
do meio-dia, e a nuvem, e o falcão no ar alçado.


*

O que de mim soubestes
foi somente a cobertura,
a túnica que reveste
a nossa humana ventura.

E talvez além do véu
houvesse um azul tranquilo;
a vedar o límpido céu
só um sigilo.

Ou ao invés fosse fantástica
a mudança em minha vida,
o descortinar de incendida
plaga que não verei mais.

Restou assim esta capa
da minha real substância;
o fogo que não se apaga
para mim se chamou: ignorância.

Se sombra avistardes, não será
sombra – eu hei de ser.
Pudesse arrancá-la de mim,
eu vos haveria de a oferecer.


*

Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
árido, voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, o vazio atrás
de mim, com um terror de embriagado.

Depois como em painel, assentarão de um lanço
árvores casas colinas para o habitual engano.
Mas será tarde demais; e eu irei muito quedo
entre os homens que não se voltam, com meu segredo.


*

Quisera ter-me sentido tosco e essencial
assim como esses seixos que revolves,
comidos por salsugem;
lasca fora do tempo, testemunho
de uma vontade fria que não passa.
Outro fui: homem fito que repara
em si, nos outros, a efervescência
da vida fugaz – homem demorado
nos atos que ninguém, depois, destrói.
Quis procurar o mal
que corrói o mundo, a pequena torção
da alavanca que para
o engenho universal: e vi a todos
os eventos do minuto
prestes a desjuntar-se num abalo.
Na trilha dum caminho eu quis o rumo
inverso, convidativo; e talvez
precisasse do gesto incisivo,
da mente que decide e se determina.
Eram-me necessários outros livros,
não tua página estrondosa.
Mas nada posso lamentar: teu canto
desata ainda os nós interiores.
O teu delírio então sobe aos astros.


    (Para a seleção desses poemas, vali-me, respectivamente, do trabalho de dois tradutores: Ivo Barroso, que incluiu alguns versos montalianos nas páginas 189 e 191 de seu O Torso e o Gato – o Melhor da Poesia Universal, publicado em 1991 pela Record, e Renato Xavier, que traduziu, em 2002, Ossos de Sépia para Cia. das Letras, em cujas páginas 79, 91 e 123 estão os exemplares que aqui escolhi).

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Dostoiévski e a imortalidade da alma

 


    A história não registra poucos nomes que decidiram apartar-se da vida. Frustrações, doenças, dívidas, convicções filosóficas ou simplesmente os ferrões da inexplicável tristeza costumam figurar entre os motivos que conduzem pessoas à morte voluntária. 
    Em seu Diário, Fiódor Dostoiévski (1821-1881) vê no suicídio o sintoma último da ausência de fé. O homem que, refém da estreita razão, pensa ser a existência terrena tudo o que há deve ser inevitavelmente levado a matar-se, pois falta-lhe de um significado maior para a própria vida, um fundamento que a justifique plenamente. Apenas convictos da imortalidade da alma, iniciamo-nos no fim razoável da vida sobre a Terra; é somente através do sentimento que podemos amar a humanidade.

    “O meu suicida é propagandista apaixonado da sua ideia: a necessidade do suicídio; mas não é nem indiferente nem ‘homem de ferro’. Sofre realmente; creio tê-lo feito compreender. É para ele demasiado evidente que não pode viver; está convencido de que tem razão e não se pode refutá-lo. Para que viver, se está convencido de que é abominável viver vida animal? Dá-se conta da existência de harmonia geral; di-lo a consciência, mas a ela não se associa. Não o compreende... Onde, então, está o mal? Em que se enganou? O mal está em ter perdido a fé na imortalidade da alma.
    Não obstante, procurou com todas as suas forças sossego e conciliação com o que o rodeia. Quis falar no ‘amor à humanidade’. Mas isto também lhe escapa. A ideia de que a vida na humanidade nada mais é do que um instante; de que tudo, mais tarde, se reduz a zero, mata, dentro dele, até mesmo o amor à humanidade. (...) A consciência de em nada poder socorrer à humanidade sofredora é capaz de transformar o amor que por ela sente em ódio. Os senhores de ‘ideias de ferro’ claro que não acreditarão em minhas palavras. Para eles o amor à humanidade e sua felicidade está tão bem organizado que não vale a pena pensar nisso. E desejo fazê-los rir de qualquer maneira. Declara, portanto, que o amor à Humanidade é inteiramente impossível sem a crença na imortalidade da alma humana. Os que querem substituir esta crença pelo amor à Humanidade depositam na alma dos que perderam a fé o germe do ódio à Humanidade. Que deem de ombros os sábios das ‘ideias de ferro’ ao ouvir-me exprimir tal ideia. Mas esta ideia é mais profunda que a sabedoria deles, e chegará o dia em que se transformará em axioma.
  Chego mesmo a afirmar que o amor à Humanidade é em geral pouco compreensível (leia-se inacessível) para a alma* humana. Somente o sentimento pode justificá-lo, e este sentimento só é possível com a crença na imortalidade da alma humana. (E, além disso, sem provas.)
    Em resumo; está claro que, sem crenças, o suicídio se torna lógico e até inevitável para o homem que apenas se elevou acima das sensações da besta. Ao contrário, a ideia da imortalidade da alma, prometendo a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Nisto parece existir uma contradição. Se, distinta da vida terrestre, temos outra celeste, para que fazer muito caso desta aqui embaixo? Mas é somente pela fé na imortalidade que o homem se inicia no fim razoável da vida sobre a Terra. Sem a convicção da imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação ao planeta diminui, e a perda do sentido supremo da vida conduz incontestavelmente ao suicídio. E se a crença na imortalidade da alma é tão necessária a alma humana, é por ser o estado normal da Humanidade, provando que a imortalidade existe. Em uma palavra: esta crença é a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência real para a Humanidade.”


(Fiódor Dostoiévski. Diário de um Escritor.
Tradução de E. Jacy Monteiro. Rio de Janeiro: 1967, págs. 164 e 165).


*Nota: parece-me ter havido, aqui, um erro de tradução. A ideia de ser “o amor à Humanidade em geral pouco compreensível para a alma humana” soa estranha e diferente daquilo que Dostoiévski propõe no texto. Kenneth Lantz (A Writer’s Diary, Northwestern Universitv Press, pág. 736) registra, na passagem em questão, a palavra mind, e não soul, que corresponderia à edição que lemos. Melhor ficaria, então: “o amor à Humanidade é em geral pouco compreensível para o raciocínio/razão/mentalidade humano(a)”.


quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Cinco poemas de Ungaretti

 


    Embora se atribua a Giuseppe Ungaretti (1888-1970) a criação do movimento hermético, não percebemos em sua poesia a introversão quase incomunicável de Eugenio Montale e Salvatore Quasimodo, os outros dois grandes nomes do hermetismo. Ungaretti, artesão da linguagem condensada e aparentemente simples, prefere falar de facetas próprias da vivência comum, da alegria e da dor.
      Nestes poemas traduzidos por Geraldo Holanda Cavalcanti, Ungaretti admoesta-se, escreve sobre o segredo próprio da arte poética, ilumina-se e, enfim, busca um país inocente. Perguntamo-nos: o poeta deseja retornar literalmente à sua Alexandria natal ou aos domínios de sua infância? Preferimos a segunda interpretação: afinal, é na meninice que se encontra um dos poucos países em que habita a inocência, característica talvez imprescindível para a poesia.


ETERNO

Entre uma flor colhida e outra ofertada
o inexprimível nada


AGONIA

Morrer como as calhandras sedentas
na miragem

Ou como a codorniz
cruzado o mar
sobre as primeiras moitas
porque já não tem ânimo
de voar

Mas não viver se queixando
como um pintassilgo cego


O PORTO SEPULTO

Ali chega o poeta
e depois regressa à luz com seus cantos
e os dispersa

Desta poesia
me sobra
aquele nada
de inesgotável segredo


MANHÃ

Ilumino-me
de imenso


VAGAMUNDO

Em parte
alguma
do mundo
me sinto
em casa

Em cada
clima
novo
que encontro
reconheço
abatido
que
um dia
a ele também já estive
afeiçoado

E dele me despego sempre
Estrangeiro

Nascendo
de volta de épocas demasiado
vividas

Gozar um único
minuto de vida
primal

Busco um país
inocente


(Giuseppe Ungaretti. Poemas, Edição bilíngue. Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti.
São Paulo: Edusp, 2017, págs. 25, 29, 43, 73 e 83).

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Cinco poemas de Nietzsche

 


    Friedrich Nietzsche (1844-1900) nos diz que o espírito humano atinge sua mais poderosa forma quando passa a criar seus próprios valores, determinar seu modo de existir, estabelecer a si mesmo o bem e o mal. O homem, então, torna-se a união do corpo e da terra, da razão e dos sentimentos, do criador e da obra.
    Talvez isso nos explique por que Nietzsche, além da conhecida figura que martelou tantos ídolos, foi um notável poeta. Nietzsche via nas artes um meio de enaltecer a vida. E reside, em seus versos, sua principal mensagem: uma ânsia calorosa por viver desacorrentado, puro, soberano de si.
    A seguir, cinco de seus curtos poemas.


POR CIMA DA MINHA PORTA

Vivo na minha própria casa,
Nunca imitei nada de ninguém
E – ainda me ri de todo o mestre
Que não riu de si mesmo.


PARA QUEM SOUBER DANÇAR

Gelo liso,
Um paraíso
Para quem souber dançar.


ALMAS ESTREITAS

São-me odiosas as almas estreitas:
De nada bom, quase de nada mau são feitas.


ECCE HOMO

Sim, bem sei donde provenho:
Insatisfeito, como chama em seco lenho,
Vou ardendo e me consumo.
Tudo o que toco faz-se luz e fumo,
Fica em carvão o que foi minha presa:
Sim, sou chama com certeza.


MORAL DE ESTRELA

Predestinada à carreira de astro,
Que te importa, Estrela, a escuridão?

Rola feliz através deste tempo!
Longe e alheia te fique a sua miséria!

O teu brilho pertence aos mundos mais distantes:
Pecado seja para ti a compaixão!

Um só mandamento vale para ti: Sê pura!


(Friedrich Nietzsche. Poemas. Tradução de Paulo Quintela.
Coimbra: Centelha, 1986, págs. 125, 133, 135, 153).

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...