quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Cinco poemas de Eugenio Montale

 


    A poesia de Eugenio Montale (1896-1981) parece representar um anseio de expressão que, sem se satisfazer, acaba nutrindo o discurso interior. Montale atravessou um tempo ferido por guerras, tensões e problemas sociais; sua voz, então, fica refém da ausência de solidez da realidade, e as alegorias que não oferecem respostas conclusivas tornam-se a representação de um mundo particular.
    Mas Montale também consegue capturar instantes de beleza. “Do bem não soube, exceto da magia / que emana da divina Indiferença: / como uma estátua assim na sonolência / do meio-dia, e a nuvem, e o falcão no ar alçado”, diz-nos uma de suas estrofes. Sua poesia, afinal, talvez seja isto mesmo: uma tentativa de compreender as emoções que nos acometem entre desassossegos existenciais e íntimos momentos de felicidade.


*

Sestear entre pálido e absorto
junto a um ardente muro de horto;
ouvir por entre sarças e estrepes
pios de melros, silvos de serpes.

Entre as fendas do solo ou pelo coentro
espiar filas de rubras formigas
que ora se espalham, ora se concentram
em cima de minúsculas vigas.

Observar entre a fronde a palpitar
ao longe as escamas do mar
enquanto se erguem os trêmulos rascos
das cigarras de altos penhascos.

E andando ao sol que nos baralha
a vista, ver – triste maravilha –
como é toda esta vida e sua estafa
ao longo deste muro que rebrilha
com seus cacos agudos de garrafa.


*

Não raro tive o mal da vida ao lado:
era o arroio arrochado que gorgolha,
ou era o esturricar-se de uma folha
ardida, ora o cavalo esquartejado.

Do bem não soube, exceto da magia
que emana da divina Indiferença:
como uma estátua assim na sonolência
do meio-dia, e a nuvem, e o falcão no ar alçado.


*

O que de mim soubestes
foi somente a cobertura,
a túnica que reveste
a nossa humana ventura.

E talvez além do véu
houvesse um azul tranquilo;
a vedar o límpido céu
só um sigilo.

Ou ao invés fosse fantástica
a mudança em minha vida,
o descortinar de incendida
plaga que não verei mais.

Restou assim esta capa
da minha real substância;
o fogo que não se apaga
para mim se chamou: ignorância.

Se sombra avistardes, não será
sombra – eu hei de ser.
Pudesse arrancá-la de mim,
eu vos haveria de a oferecer.


*

Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
árido, voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, o vazio atrás
de mim, com um terror de embriagado.

Depois como em painel, assentarão de um lanço
árvores casas colinas para o habitual engano.
Mas será tarde demais; e eu irei muito quedo
entre os homens que não se voltam, com meu segredo.


*

Quisera ter-me sentido tosco e essencial
assim como esses seixos que revolves,
comidos por salsugem;
lasca fora do tempo, testemunho
de uma vontade fria que não passa.
Outro fui: homem fito que repara
em si, nos outros, a efervescência
da vida fugaz – homem demorado
nos atos que ninguém, depois, destrói.
Quis procurar o mal
que corrói o mundo, a pequena torção
da alavanca que para
o engenho universal: e vi a todos
os eventos do minuto
prestes a desjuntar-se num abalo.
Na trilha dum caminho eu quis o rumo
inverso, convidativo; e talvez
precisasse do gesto incisivo,
da mente que decide e se determina.
Eram-me necessários outros livros,
não tua página estrondosa.
Mas nada posso lamentar: teu canto
desata ainda os nós interiores.
O teu delírio então sobe aos astros.


    (Para a seleção desses poemas, vali-me, respectivamente, do trabalho de dois tradutores: Ivo Barroso, que incluiu alguns versos montalianos nas páginas 189 e 191 de seu O Torso e o Gato – o Melhor da Poesia Universal, publicado em 1991 pela Record, e Renato Xavier, que traduziu, em 2002, Ossos de Sépia para Cia. das Letras, em cujas páginas 79, 91 e 123 estão os exemplares que aqui escolhi).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Safo de Lesbos: alguns fragmentos

Sappho Inspired by Love , de Angelica Kauffman (1775) Dos nove livros que Safo de Lesbos (630-570 a.C.) provavelmente compôs, apenas um poem...