quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Dostoiévski e a imortalidade da alma

 


    A história não registra poucos nomes que decidiram apartar-se da vida. Frustrações, doenças, dívidas, convicções filosóficas ou simplesmente os ferrões da inexplicável tristeza costumam figurar entre os motivos que conduzem pessoas à morte voluntária. 
    Em seu Diário, Fiódor Dostoiévski (1821-1881) vê no suicídio o sintoma último da ausência de fé. O homem que, refém da estreita razão, pensa ser a existência terrena tudo o que há deve ser inevitavelmente levado a matar-se, pois falta-lhe de um significado maior para a própria vida, um fundamento que a justifique plenamente. Apenas convictos da imortalidade da alma, iniciamo-nos no fim razoável da vida sobre a Terra; é somente através do sentimento que podemos amar a humanidade.

    “O meu suicida é propagandista apaixonado da sua ideia: a necessidade do suicídio; mas não é nem indiferente nem ‘homem de ferro’. Sofre realmente; creio tê-lo feito compreender. É para ele demasiado evidente que não pode viver; está convencido de que tem razão e não se pode refutá-lo. Para que viver, se está convencido de que é abominável viver vida animal? Dá-se conta da existência de harmonia geral; di-lo a consciência, mas a ela não se associa. Não o compreende... Onde, então, está o mal? Em que se enganou? O mal está em ter perdido a fé na imortalidade da alma.
    Não obstante, procurou com todas as suas forças sossego e conciliação com o que o rodeia. Quis falar no ‘amor à humanidade’. Mas isto também lhe escapa. A ideia de que a vida na humanidade nada mais é do que um instante; de que tudo, mais tarde, se reduz a zero, mata, dentro dele, até mesmo o amor à humanidade. (...) A consciência de em nada poder socorrer à humanidade sofredora é capaz de transformar o amor que por ela sente em ódio. Os senhores de ‘ideias de ferro’ claro que não acreditarão em minhas palavras. Para eles o amor à humanidade e sua felicidade está tão bem organizado que não vale a pena pensar nisso. E desejo fazê-los rir de qualquer maneira. Declara, portanto, que o amor à Humanidade é inteiramente impossível sem a crença na imortalidade da alma humana. Os que querem substituir esta crença pelo amor à Humanidade depositam na alma dos que perderam a fé o germe do ódio à Humanidade. Que deem de ombros os sábios das ‘ideias de ferro’ ao ouvir-me exprimir tal ideia. Mas esta ideia é mais profunda que a sabedoria deles, e chegará o dia em que se transformará em axioma.
  Chego mesmo a afirmar que o amor à Humanidade é em geral pouco compreensível (leia-se inacessível) para a alma* humana. Somente o sentimento pode justificá-lo, e este sentimento só é possível com a crença na imortalidade da alma humana. (E, além disso, sem provas.)
    Em resumo; está claro que, sem crenças, o suicídio se torna lógico e até inevitável para o homem que apenas se elevou acima das sensações da besta. Ao contrário, a ideia da imortalidade da alma, prometendo a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Nisto parece existir uma contradição. Se, distinta da vida terrestre, temos outra celeste, para que fazer muito caso desta aqui embaixo? Mas é somente pela fé na imortalidade que o homem se inicia no fim razoável da vida sobre a Terra. Sem a convicção da imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação ao planeta diminui, e a perda do sentido supremo da vida conduz incontestavelmente ao suicídio. E se a crença na imortalidade da alma é tão necessária a alma humana, é por ser o estado normal da Humanidade, provando que a imortalidade existe. Em uma palavra: esta crença é a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência real para a Humanidade.”


(Fiódor Dostoiévski. Diário de um Escritor.
Tradução de E. Jacy Monteiro. Rio de Janeiro: 1967, págs. 164 e 165).


*Nota: parece-me ter havido, aqui, um erro de tradução. A ideia de ser “o amor à Humanidade em geral pouco compreensível para a alma humana” soa estranha e diferente daquilo que Dostoiévski propõe no texto. Kenneth Lantz (A Writer’s Diary, Northwestern Universitv Press, pág. 736) registra, na passagem em questão, a palavra mind, e não soul, que corresponderia à edição que lemos. Melhor ficaria, então: “o amor à Humanidade é em geral pouco compreensível para o raciocínio/razão/mentalidade humano(a)”.


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