segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Cinquenta anos sem Nick Drake



     A morte de Nick Drake (1948-1974) completa, neste 25 de novembro de 2024, cinquenta anos.
     Nick Drake foi um dos músicos mais sensíveis que o século passado nos deu. Em suas canções, letras belíssimas unem-se a hábeis melodias de violão, formando uma espécie de poesia rara, outonal e profundamente tocante.
     Embora tenha refinado o agudo modelo lírico estabelecido por Jackson C. Frank, Bert Jansch e Bob Dylan, Nick foi quase anônimo em seu tempo: seus três álbuns – Five Leaves Left (1969), Bryter Layter (1971) e Pink Moon (1972) – contaram com péssimas vendas e ficaram reduzidos a um grupo bastante restrito de apreciadores, até porque o poeta recusava-se a performar shows ou dar entrevistas para divulgá-los. Entre decepções artísticas, crises pessoais e momentos de lancinante tristeza, Nick renunciou à vida aos vinte e seis anos, deixando-nos a lamentar muito o seu cedo falecimento – mas, também, a estimar a Beleza incomparável de sua obra e de seu legado.
     É pena que não posso dizer-lhe o quão imensamente eu o admiro. Como poucos, Nick Drake é um valioso amigo que sempre me oferece luz em tempos escuros.
     A seguir, traduzo alguns trechos da parte final de Nick Drake: The Biography, por Patrick Humphries. Deixo, além disso, links para as suas canções de que mais gosto.


     Nick was prone to sleepless nights, frequently prowling the house in the small hours. His mother, alert to his movements, would often get up and sit with him in the kitchen until he returned to bed. But that night, when Nick woke and went down to the kitchen, Molly slept on. No one will ever know what thoughts went through Nick Drake’s mind in the long and solitary, dark hours before dawn. Sometime on the morning of Monday 25 November 1974 – probably around 6a.m. – the extra Tryptizol he had taken that night caused Nick Drake’s heart to stop beating.
     That Nick Drake died so young is a terrible tragedy; not just because of who he was, but because of what he might have become. The potential of all those years left unlived. Nick Drake was a man of sincerity, an artist of tremendous calibre and one of the few entitled to be called unique. The fact that there is no film footage of Nick Drake performing undoubtedly feeds the myth. The photos – and there are few enough even of those – freeze-frame the image of Nick, shy and hesitant before the camera, capturing him for ever in the aspic of immortality: half-smiling at halfremembered memories.
     How Nick’s life would have developed had he lived, is of course the question which continues to fascinate those who have grown to love his music. If he had conquered his depression, would he have wanted to write and record again? Would he ever have felt capable of returning to his former life? Indeed is it possible to imagine a life for Nick which didn’t involve music?
     It is fascinating, but fruitless to speculate. We will never know. Even those closest to him could never know. It seems likely that not even Nick knew. In the end, though, Nick Drake was born, and died, the way he was. The sadness and introspection gave birth to the music. Had he been less contemplative, it is unlikely that he would have produced such inimitable music. And music was very important to Nick.
     Any valour and heroism in Nick’s all-too-short life came in the courage of his living. It can be seen in his proud but foolhardy determination to try to beat his illness on his own, and in the will to go back and record even after he had apparently given up hope and retreated to Tanworth. It came in the day-to-day battles with despair, the acceptance of a life unfulfilled and empty, and the continued, weary living of that life.
     But no life worth the name is ever that simple, and even the brief life of Nick Drake abounds with contradictions: the boy who seemed to personify the corrosive effects of loneliness, though he never really left his parents’ home; who found communication such an effort, but reached out so fluently, to so many, through his work. Perhaps in the end facts can only diminish the myth, but ultimately the life is more important. For whatever the truth about Nick Drake’s death, it remains a tragedy – just as his legacy of extraordinary songs remains a triumph, and a joyful one at that.

     –
     Nick era propenso a noites em claro, frequentemente perambulando pela casa durante a madrugada. Muitas vezes, sua mãe, atenta aos seus movimentos do filho, levantava-se e se sentava com ele na cozinha até que ele voltasse para a cama. Mas, naquela noite, quando Nick acordou, ela continuou dormindo.
     Ninguém jamais saberá que pensamentos passaram por sua mente nas longas, solitárias horas de escuridão antes da alvorada. Em algum momento da manhã de segunda-feira, 25 de novembro de 1974, provavelmente por volta das 6h, o Tryptizol extra que Nick havia tomado lhe parou o coração.
     Que Nick Drake tenha morrido tão jovem é uma tragédia terrível – não apenas por quem ele foi, mas por aquilo que ele poderia ter sido, por todo o potencial dos anos não vividos. Nick era alguém de profunda sinceridade, um artista de calibre excepcional e um dos poucos que realmente merecem ser considerados únicos. Certamente, a ausência de qualquer filmagem em que ele se apresente alimenta o mito. As fotografias – e mesmo elas são raras – guardam a imagem de Nick, tímido e hesitante diante da câmera, preservando-o para sempre na moldura imutável da imortalidade: um meio-sorriso evocando memórias meio esquecidas.
     Como a vida de Nick teria sido se ele houvesse sobrevivido é uma questão que continua cativando aqueles que aprenderam a amar sua música. Se tivesse superado a depressão, será que desejaria voltar a compor e gravar? Será que algum dia se sentiria capaz de retornar à sua antiga vida? É possível, afinal, imaginar uma existência para Nick que não estivesse entrelaçada com a música?
     É uma especulação fascinante, mas inútil. Nós nunca saberemos. Aqueles mais íntimos dele não sabiam. Parece que nem sequer o próprio Nick sabia. No fim, porém, Nick Drake nasceu e morreu como ele era. A tristeza e a introspecção deram origem à sua música. Tivesse ele sido menos contemplativo, é improvável que produzisse uma obra musical tão inimitável. E música era algo muito importante para Nick.
     O verdadeiro heroísmo da breve existência de Nick está em sua coragem de existir. Está em sua tolamente orgulhosa determinação de vencer sozinho a doença que o abatia. Está em sua perseverança em retornar a gravar canções mesmo tendo aparentemente desistido de tudo e se refugiado na casa de seus pais, em Tanworth. Está em suas lutas diárias contra a desesperança. Está em aceitar uma vida incompleta e vazia – e, não obstante, em continuar a viver a vida.
     Ainda assim, nenhuma vida que valha a pena é tão simples, e até mesmo a de Nick guarda contradições: o garoto que parecia personificar os efeitos corrosivos da solidão nunca realmente saiu da casa dos pais; o poeta que sentia uma dificuldade tremenda de exercer a comunicação foi capaz de comunicar-se tão fluentemente com tantas pessoas por meio de seus versos. Talvez os fatos possam diminuir o mito, mas, no final das contas, a vida é mais importante. Seja qual for a verdade sobre a morte de Nick Drake, ela continua sendo uma tragédia – assim como o seu legado de músicas extraordinárias continua sendo um triunfo, um triunfo que celebramos com alegria.


     The Thoughts of Mary Jane: https://music.youtube.com/watch?v=XpR_OdvyRNI&si=TP7TuqsDZIroI-_l;
     Fly: https://music.youtube.com/watch?v=aCCn2Mal5mM&si=8wdjbKYR6PiHlf3T;
     Road: https://music.youtube.com/watch?v=jpk32L8Bb4c&si=Ow6EwPOf1PiZL0dR;
     Things Behind the Sun: https://music.youtube.com/watch?v=j14PgxHghjQ&si=gyNDMQPhsjF4X0cP;
     From the Morning: https://music.youtube.com/watch?v=xPe5ZQx0OpQ&si=bY_AYIWF_LAY1J34;
     Rider on the Wheel: https://music.youtube.com/watch?v=54zfEaaHURM&si=Au_WN2fsDChzS0BR (presente em um álbum póstumo, Made To Love Magic, de 2004).


Túmulo de poeta em Tanworth-in-Arden, inscrito com versos de From the Morning

Noite em Londres, cidade que o poeta costumava frequentar (3/24)

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Werner Jaeger: o ideal grego


     O alemão Werner Jaeger (1888-1961) foi um humanista tão arcaico quanto moderno: filólogo dedicado ao estudo dos textos clássicos, Jaeger defendia, em tempos de loucura nazista, que a grandeza do ser humano transcende critérios raciais e reside em sua capacidade de pensar sobre o mundo, de exercer a cultura, de contribuir para a civilização.
     Para o professor, é a alma, e não a etnia, aquilo que une o ocidental do presente ao grego da antiguidade. E é só através do cultivo de valores humanísticos que podemos descobrir, individualmente, os nossos próprios ideais de vida. Esses valores, ensina-nos Jaeger, encontram na antiga Grécia a sua expressão mais completa, refinada e nobre: “Outras nações fizeram deuses, reis, espíritos; só os gregos fizeram homens.”
     A cultura, portanto, vive, flui, altera-se – mas sua essência permanece imutável. Prova disto é o fato de uma Grécia derrotada ter, no fim, vencido: conquistados por Roma, os gregos foram o povo que os romanos mais imitaram. Cumpre-nos seguir o exemplo do humanista que, rejeitando a influência das massas de seu tempo, escolheu ser o indivíduo Werner Jaeger e buscar, por si próprio, um ideal de humanidade.
     A seguir, traduzo alguns breves excertos do início de sua magnum-opus, a indispensável Paideia: The Ideals of Greek Culture, nas palavras em inglês de Gilbert Highet.


     Every nation which has reached a certain stage of development is instinctively impelled to practice education. Education is the process by which a community preserves and transmits its physical and intellectual character. For the individual passes away, but the type remains.
     Greece is in a special category. From the point of view of the present day, the Greeks constitute a fundamental advance on the great peoples of the Orient, a new stage in the development of society. They established an entirely new set of principles for communal life. However highly we may value the artistic, religious, and political achievements of earlier nations, the history of what we can truly call civilization – the deliberate pursuit of an ideal – does not begin until Greece.
     Greece is much more than a mirror to reflect the civilization of today, or a symbol of our rationalistic consciousness of selfhood. The creation of any ideal is surrounded by all the secrecy and wonder of birth; and, with the increasing danger of degrading even the highest by daily use, men who realize the deeper values of the human spirit must turn more and more to the original forms in which it was first embodied, at the dawn of historical memory and creative genius.
     Man is the center of their thought. Their anthropomorphic gods; their concentration of the problem of depicting the human form in sculpture and even in painting; the logical sequence by which their philosophy moved from the problem of the cosmos to the problem of man, in which culminated with Socrates, Plato, and Aristotle; their poetry, whose inexhaustible theme from Homer throughout all the succeeding centuries is man, his destiny, and his gods; and finally their state, which cannot be understood unless viewed as the force which shaped man and man's life – all these are separate rays from one great light. They are the expressions of an anthropocentric attitude to life, which pervades everything felt, made, or thought by the Greeks. Other nations made gods, kings, spirits: the Greeks alone made men.
     But what is the ideal man? It is the universally valid model of humanity which all individuals are bound to imitate. The Greeks who lived at the beginning of the Roman empire were the first to describe the masterpieces of the great age of Greece as 'classical' in the timeless sense – partly as formal patterns for subsequent artists to imitate, partly as ethical models for posterity to follow. At that time, Greek history had become part of the life of the world-wide empire of Rome, the Greeks had ceased to be an independent nation, and the only higher ideal which they could still follow was the preservation and veneration of their own tradition.


     –

     Toda nação que atinge um certo estado de desenvolvimento é instintivamente impelida a praticar a educação. A educação consiste no processo através do qual uma comunidade preserva e transmite o seu carácter físico e intelectual. Porque o indivíduo passa, mas o tipo permanece.
     A Grécia pertence a uma categoria especial. Do ponto de vista atual, os gregos constituem um fundamental avanço em relação aos grandes povos do Oriente – uma nova etapa no desenvolvimento da sociedade. Eles estabeleceram um conjunto inteiramente novo de princípios à vida em comunidade. Por mais que valorizemos as realizações artísticas, religiosas e políticas das nações anteriores, a história daquilo a que podemos verdadeiramente chamar civilização – a busca deliberada de um ideal – não começa antes da Grécia.
     A Grécia é bem mais do que um espelho que reflete a sociedade de hoje ou um símbolo da nossa consciência racionalista do “eu”. A criação de qualquer ideal carrega o segredo e a maravilha do nascimento; e, diante do crescente perigo de a presente cultura de massas degradar até mesmo aquilo que é mais elevado, quem compreende os valores profundos do espírito humano deve voltar-se, cada vez mais, para as formas originais em que esses valores encarnaram-se: na aurora da memória histórica e do gênio criativo.
     O homem é o centro do pensamento grego. Seus deuses antropomórficos; seu engenho de representar a forma humana na escultura e na pintura; sua filosofia, que, em sequência lógica, passou do problema do cosmos para o problema do homem, culminando com Sócrates, Platão e Aristóteles; sua poesia, cujo tema inesgotável, desde Homero ao longo de todos os séculos seguintes, é o homem, o destino do homem e os deuses do homem; e, finalmente, seu Estado, que só pode ser compreendido se visto como a força que moldou o homem e a sua vida – todos estes são raios separados de uma grande luz, são expressões de uma atitude antropocêntrica em relação à vida que permeia tudo aquilo que é sentido, consumado ou pensado pelos gregos. Outras nações fizeram deuses, reis, espíritos; só os gregos fizeram homens.
     Mas o que é o homem ideal? É o modelo de humanidade universalmente válido em que todos os indivíduos devem inspirar-se. Os gregos vivendo no início do Império Romano foram os primeiros a descrever as obras-primas da grande época da Grécia como “clássicas” no sentido atemporal – em parte como padrões formais que os artistas subsequentes deveriam imitar, em parte como modelos éticos que a posteridade deveria seguir. Àquela altura, a história grega havia tornado-se parte da vida do império mundial de Roma, os gregos haviam deixado de ser uma nação independente e o único ideal superior que ainda podiam seguir era a preservação e a veneração da sua própria tradição.


 Erechtheion (Acrópole, Atenas, 9/24)

domingo, 10 de novembro de 2024

Louise Glück: O Triunfo de Aquiles

 


     Louise Glück (1943-2023), que nos deixou no ano passado, produziu uma lírica de extraordinária sensibilidade. Não é à toa que, agraciada com láureas diversas, a poeta pôde fruir a gratidão de apaixonados leitores pelos mais distintos países – entre os quais, embora tardiamente, está o Brasil.
     Os inesgotáveis versos de Homero são uma fonte de que sua obra constantemente bebe. No poema a seguir, de 1985, Glück volta-se a um dos mais tocantes episódios da Ilíada (Canto XVIII) para explorar a vulnerabilidade inescapável da trágica condição humana – e, ao mesmo tempo, trazer à luz a Beleza que emana dessa condição. 
     Se o aspecto divino de Aquiles o torna o guerreiro mais poderoso, temido e invejado entre os gregos, é sua humanidade que verdadeiramente atravessa os milênios e ainda nos emociona. Quando morre Pátroclo, seu melhor amigo – e possível amante –, a tristeza que lacera o coração do herói é tão profunda, que os deuses percebem-no “um homem já falecido”. Não obstante todas as vitórias, espólios e láureas da glória, Aquiles chorou: nem mesmo o maior dos mortais pode escapar da dor de ser humano.
     É possível, então, enxergarmos a mortalidade como um tipo de maldição. Mas Glück inverte as perspectivas: é apenas em nossa finitude que podemos, verdadeiramente, sentir, sofrer e amar. Os deuses, invulneráveis aos infortúnios que tanto nos afligem, são, por definição, incapazes da nobreza em atos de coragem, altruísmo e, neste caso, de amor. Ao fim e ao cabo, Aquiles personifica essa verdade: Aquiles não triunfa por gozar da fama, possuir riquezas ou vencer Heitor; Aquiles triunfa porque sabe ser excessivamente humano – porque sente, porque sofre e, acima de tudo, porque ama.


The Triumph of Achilles

In the story of Patroclus
no one survives, not even Achilles
who was nearly a god.
Patroclus resembled him; they wore
the same armor.

Always in these friendships
one serves the other, one is less than the other:
the hierarchy
is always apparent, though the legends
cannot be trusted—
their source is the survivor,
the one who has been abandoned.

What were the Greek ships on fire
compared to this loss?

In his tent, Achilles
grieved with his whole being
and the gods saw

he was a man already dead, a victim
of the part that loved,
the part that was mortal.


O Triunfo de Aquiles

Na lenda de Pátroclo,
ninguém sobrevive, nem mesmo Aquiles,
que era quase um deus.
Pátroclo parecia-se com ele: ambos trajavam
a mesma armadura.

Em amizades assim, um
sempre serve ao outro, um é menos do que o outro:
a hierarquia
fica sempre clara, embora as lendas
não sejam confiáveis –
sua fonte é aquele que sobreviveu,
aquele que foi abandonado.

O que os navios em chamas eram
comparados com essa perda?

Em sua tenda, Aquiles
sofria de todo o ser – 
e os deuses viram

que ele era um homem já falecido, uma vítima
da parte que amava,
a parte que era mortal.


Relíquia que retrata Aquiles curando as feridas de Pátroclo em Tróia (Altes Museum, Berlim, 7/24)

Drummond: Passagem do Ano

     Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) era um homem de temperamento reservado, discreto e meditativo – mas sabia compor versos que, enc...