domingo, 10 de novembro de 2024

Louise Glück: O Triunfo de Aquiles

 


     Louise Glück (1943-2023), que nos deixou no ano passado, produziu uma lírica de extraordinária sensibilidade. Não é à toa que, agraciada com láureas diversas, a poeta pôde fruir a gratidão de apaixonados leitores pelos mais distintos países – entre os quais, embora tardiamente, está o Brasil.
     Os inesgotáveis versos de Homero são uma fonte de que sua obra constantemente bebe. No poema a seguir, de 1985, Glück volta-se a um dos mais tocantes episódios da Ilíada (Canto XVIII) para explorar a vulnerabilidade inescapável da trágica condição humana – e, ao mesmo tempo, trazer à luz a Beleza que emana dessa condição. 
     Se o aspecto divino de Aquiles o torna o guerreiro mais poderoso, temido e invejado entre os gregos, é sua humanidade que verdadeiramente atravessa os milênios e ainda nos emociona. Quando morre Pátroclo, seu melhor amigo – e possível amante –, a tristeza que lacera o coração do herói é tão profunda, que os deuses percebem-no “um homem já falecido”. Não obstante todas as vitórias, espólios e láureas da glória, Aquiles chorou: nem mesmo o maior dos mortais pode escapar da dor de ser humano.
     É possível, então, enxergarmos a mortalidade como um tipo de maldição. Mas Glück inverte as perspectivas: é apenas em nossa finitude que podemos, verdadeiramente, sentir, sofrer e amar. Os deuses, invulneráveis aos infortúnios que tanto nos afligem, são, por definição, incapazes da nobreza em atos de coragem, altruísmo e, neste caso, de amor. Ao fim e ao cabo, Aquiles personifica essa verdade: Aquiles não triunfa por gozar da fama, possuir riquezas ou vencer Heitor; Aquiles triunfa porque sabe ser excessivamente humano – porque sente, porque sofre e, acima de tudo, porque ama.


The Triumph of Achilles

In the story of Patroclus
no one survives, not even Achilles
who was nearly a god.
Patroclus resembled him; they wore
the same armor.

Always in these friendships
one serves the other, one is less than the other:
the hierarchy
is always apparent, though the legends
cannot be trusted—
their source is the survivor,
the one who has been abandoned.

What were the Greek ships on fire
compared to this loss?

In his tent, Achilles
grieved with his whole being
and the gods saw

he was a man already dead, a victim
of the part that loved,
the part that was mortal.


O Triunfo de Aquiles

Na lenda de Pátroclo,
ninguém sobrevive, nem mesmo Aquiles,
que era quase um deus.
Pátroclo parecia-se com ele: ambos trajavam
a mesma armadura.

Em amizades assim, um
sempre serve ao outro, um é menos do que o outro:
a hierarquia
fica sempre clara, embora as lendas
não sejam confiáveis –
sua fonte é aquele que sobreviveu,
aquele que foi abandonado.

O que os navios em chamas eram
comparados com essa perda?

Em sua tenda, Aquiles
sofria de todo o ser – 
e os deuses viram

que ele era um homem já falecido, uma vítima
da parte que amava,
a parte que era mortal.


Relíquia que retrata Aquiles curando as feridas de Pátroclo em Tróia (Altes Museum, Berlim, 7/24)

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