quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Percy Shelley: Ozymandias

 

Percy Bysshe Shelley, por Alfred Clint (1819)

    Neste famoso soneto de Percy Shelley (1792-1822), um viajante que retornou de uma “terra ancestral” nos descreve o decaído estado de um monumento dedicado a Ramsés II – em grego, Ozymandias –, longevo governante do Antigo Egito: outrora grandiosas, as feições do faraó jazem agora despedaçadas e esquecidas em paragens desertas.
   Shelley nos lembra que o tempo trata sempre de delir o semblante do poder e arruinar suas pretensões de grandeza imortal. E a mesma coisa vale para todo o resto: todos os conflitos, alegrias, sofrimentos e paixões serão recordações contadas por algum andarilho que se depare com suas velhas ruínas.


Ozymandias

I met a traveller from an antique land,
Who said – “Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert… Near them, on the sand,
Half sunk a shattered visage lies, whose frown,
And wrinkled lip, and sneer of cold command,
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamped on these lifeless things,
The hand that mocked them, and the heart that fed;
And on the pedestal, these words appear:
My name is Ozymandias, King of Kings;
Look on my Works, ye Mighty, and despair!
Nothing beside remains. Round the decay
Of that colossal Wreck, boundless and bare
The lone and level sands stretch far away.”



Ozymandias

Conheci um viajante de uma terra ancestral;
Contou-me: Sem tronco, duas pernas enormes
Erguem-se no deserto… Perto delas no areal,
Semienterrada, a cabeça em partes disformes,
Franze o cenho, e o escárnio de um comando glacial,
Mostra-nos que o escultor captou bem o seu estado
Que ainda sobrevive estampado nessas pedras estéreis,
A mão que dele troçou e o coração que foi alimentado;
E no pedestal estão grafadas as seguintes palavras:
“Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Ó Poderosos, rendei-vos ao olhar minhas obras!”
Nada além permanece. Ao redor do desolamento
Da ruína colossal, infinitas e desertas
As areias planas e solitárias se estendem ao vento.


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(Percy Bysshe Shelley. Sementes Aladas: antologia poética. Tradução de
Alberto Marsicano e John Milton. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010, págs. 50 e 51)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Pablo Neruda: O Poeta

 


    O poeta de Pablo Neruda (1904-1973) adquire voz a partir de experiências térreas, entranhando-se naquilo que é expresso pela realidade palpável. Sua poesia, assim, logra um estado de rica autoconsciência, versada em todas as mazelas humanas e parente das muitas faces da vida.
     E não porque seu estro viaja até o aparente limite do desalento o poeta se pretende um demolidor de esperanças: amadurecido, ele percebe nas coisas tristes do mundo – a cobiça, a inveja, a hostilidade e, por fim, a morte – a possibilidade de abrirem-se portas e caminhos diversos.


El Poeta

Antes anduve por la vida, en medio
de un amor doloroso: antes retuve
una pequeña página de cuarzo
clavándome los ojos en la vida.
Compré bondad, estuve en el mercado
de la codicia, respiré las aguas
más sordas de la envidia, la inhumana
hostilidad de máscaras y seres.
Viví un mundo de ciénaga marina
en que la flor de pronto, la azucena
me devoraba en su temblor de espuma,
y donde puse el pie resbaló mi alma
hacia las dentaduras del abismo.
Asi nació mi poesia, apenas
rescatada de ortigas, empuñada
sobre la soledad como un castigo,
o apartó en el jardin de la impudicia
su más secreta flor hasta enterrarla.
Aislado así como el agua sombría
que vive en sus profundos corredores,
corrí de mano en mano, al aislamiento
de cada ser, al odio cuotidiano.
Supe que así vivían, escondiendo
la mitad de los seres, como peces
del más extraño mar, y en las fangosas
inmensidades encontré la muerte.
La muerte abriendo puertas y caminos.
La muerte deslizándose en los muros.



O Poeta

Outrora andei pela vida, em meio
a um doloroso amor: outrora retive
uma pequena página de quartzo
firmando na vida meus olhos.
Comprei bondade, estive no mercado
da cobiça, respirei as águas
mais surdas da inveja, a inumana
hostilidade de máscaras e seres.
Vivi um mundo de pântano marinho
em que de repente a flor, a açucena,
devorava-me em seu tremor de espuma,
e onde pus o pé, a minha alma resvalou
até as dentaduras do abismo.
Assim nasceu minha poesia, mal
resgatada de urtigas, empunhada
sobre a solidão como um castigo,
ou apartada para banir a sua mais secreta
flor no jardim da imodéstia até enterrá-la.
Isolado assim como a água sombria
que vive em seus profundos corredores,
corri de mão em mão, ao isolamento
de cada ser, ao ódio cotidiano.
Soube que assim viviam, escondendo
a metade dos seres, como peixes
do mais estranho mar, e nas lodosas
imensidades encontrei a morte.
A morte abrindo portas e caminhos. 
A morte deslizando nos muros.

(NERUDA, Pablo. Antología General.
Lima: Real Academia Española, 2010, pág. 209)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Francis Bacon: Sobre os Estudos

 


    Muito vale a qualquer amante das Humanidades debruçar-se sobre os escritos ensaísticos de Francis Bacon (1561-1625), que logram sempre ser perspicazes, provocativos e concisos.
    No texto a seguir, Bacon nos discorre acerca do ato de estudar. Argumenta o filósofo que o aprendizado, a sabedoria e o discernimento “aperfeiçoam a natureza”, sendo os estudos impreteríveis para que cultivemos nossas habilidades naturais. E nos aconselha, sensatamente, a exercer a leitura não para fins de decidido conflito ou aceitação cega, “e sim para ponderar e considerar” os vários aspectos da realidade.


    Of Studies
   Studies serve for delight, for ornament, and for ability. Their chief use for delight, is in privateness and retiring; for ornament, is in discourse; and for ability, is in the judgment, and disposition of business. For expert men can execute, and perhaps judge of particulars, one by one; but the general counsels, and the plots and marshalling of affairs, come best, from those that are learned. To spend too much time in studies is sloth; to use them too much for ornament, is affectation; to make judgment wholly by their rules, is the humor of a scholar. They perfect nature, and are perfected by experience: for natural abilities are like natural plants, that need proyning, by study; and studies themselves, do give forth directions too much at large, except they be bounded in by experience. Crafty men contemn studies, simple men admire them, and wise men use them; for they teach not their own use; but that is a wisdom without them, and above them, won by observation. Read not to contradict and confute; nor to believe and take for granted; nor to find talk and discourse; but to weigh and consider. Some books are to be tasted, others to be swallowed, and some few to be chewed and digested; that is, some books are to be read only in parts; others to be read, but not curiously; and some few to be read wholly, and with diligence and attention. Some books also may be read by deputy, and extracts made of them by others; but that would be only in the less important arguments, and the meaner sort of books, else distilled books are like common distilled waters, flashy things. Reading maketh a full man; conference a ready man; and writing an exact man. And therefore, if a man write little, he had need have a great memory; if he confer little, he had need have a present wit: and if he read little, he had need have much cunning, to seem to know, that he doth not. Histories make men wise; poets witty; the mathematics subtile; natural philosophy deep; moral grave; logic and rhetoric able to contend. Abeunt studia in mores. Nay, there is no stond or impediment in the wit, but may be wrought out by fit studies; like as diseases of the body, may have appropriate exercises. Bowling is good for the stone and reins; shooting for the lungs and breast; gentle walking for the stomach; riding for the head; and the like. So if a man's wit be wandering, let him study the mathematics; for in demonstrations, if his wit be called away never so little, he must begin again. If his wit be not apt to distinguish or find differences, let him study the Schoolmen; for they are cymini sectores. If he be not apt to beat over matters, and to call up one thing to prove and illustrate another, let him study the lawyers' cases. So every defect of the mind, may have a special receipt.


     Sobre os Estudos 
    Os estudos servem ao deleite, ao ornamento e à capacitação. Seu principal uso para o deleite consiste na reclusão e no retiro; para o ornamento, na loquacidade; para a capacitação, no escrutínio e na condução de assuntos práticos. Os homens sagazes, afinal, podem executar e avaliar bem cada caso, mas os conselhos gerais, o planejamento e a ponderação das coisas vêm melhor daqueles que estudam. Implica em indolência gastar muito tempo nos estudos; usá-los demais para adornamento revela afetação; julgar algo inteiramente pelos critérios dos estudos é esquisitice. Os estudos aperfeiçoam a natureza e são aperfeiçoados pela experiência, pois as habilidades naturais são como plantas que precisam cultivo por meio de estudo; ainda, os estudos fornecem direções em geral, exceto quando estão vinculados à experiência. Os homens astutos desprezam os estudos, os simples admiram-nos, os sábios utilizam-nos: os estudos não ensinam o seu próprio uso, mas que há uma sabedoria independente e superior adquirida da observação. Leia não para discutir ou refutar, nem para acreditar ou ter algo por certo, nem para encontrar conversa ou discurso, e sim para ponderar e considerar. Certos livros devem ser degustados, outros devem ser engolidos, e alguns poucos devem ser mastigados e digeridos. Isto é: certos livros devem ser lidos somente em partes; outros devem ser lidos, mas não por curiosidade; e alguns poucos devem ser lidos integralmente, com diligência e atenção. Alguns livros igualmente podem ser lidos por resumos e excertos feitos por outros, mas isso seria apenas para os assuntos menos importantes e típicos dos livros mais vulgares, uma vez que obras destiladas são como as águas destiladas comuns: carecem de substância. A leitura forma um homem completo; a discussão, um homem pronto; a escrita, um homem exato. Portanto, se um homem escreve pouco, ele necessita de uma boa memória; se discute pouco, de uma perspicácia afiada; e, se lê pouco, necessita de sagacidade para fingir que sabe aquilo que não sabe. As histórias tornam os homens sábios e os poetas espirituosos; a matemática torna-os sutis; as ciências, profundos; a moral, sóbrios; e a lógica e retórica os tornam capazes de argumentar. Abeunt studia in mores. Não, não há barreira ou impedimento à inteligência que não possa ser superada por meio de estudos apropriados, tal como, para as enfermidades do corpo, há sempre exercícios adequados. O boliche é bom para as pedras e doenças dos rins; os tiros com arco, para os pulmões e o peito; a caminhada leve é boa para o estômago; andar, para a cabeça, e assim por diante. Portanto, se a inteligência de um homem estiver distraída, que estude matemática, pois, falhando nas demonstrações, ele terá de começar de novo. Se não estiver apta a distinguir ou encontrar diferenças, que estude os escolásticos, visto que eles são especialistas em cymini sectores. E, se o homem não estiver apto a debater sobre assuntos em geral, a tentar provar uma coisa e ilustrar com outra, que estude os casos dos juristas. Assim, para cada defeito de inteligência, há uma receita especial.

(Francis Bacon. The Complete Works. Centaur Editions, 2015)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Ida Vitale: Resíduo

 


    Muito se pode apreciar na poesia essencialista da uruguaia Ida Vitale (1923-), agraciada, em 2019, com o Prêmio Cervantes. Vitale costuma tecer poemas curtos, nos quais busca os sentidos das palavras e vale-se da metalinguagem para elaborar interessantes alegorias.
    Neste curto Resíduo, a poeta traça um paralelo entre a memória e a poesia: todas as experiências que atravessamos em vida serão reduzidas à mera lembrança, e é de seus resíduos que nascem os bons versos. Antigas viagens, perfumes e sensações nos lembram daquilo que de melhor nos ocorreu durante a vida – e, questiona-se Vitale, será isso a poesia?


Residua

Corta la vida o larga, todo
lo que vivimos se reduce
a un gris residuo en la memoria.

De los antiguos viajes quedan
las enigmáticas monedas
que pretenden valores falsos.

De la memoria sólo sube
un vago polvo y un perfume.
¿Acaso sea la poesía?


Resídua

Curta a vida ou longa, tudo
o que vivemos se reduz
a um gris resíduo na memória.

Das antigas viagens restam
as enigmáticas moedas
que pretendem valores falsos.

Da memória apenas sobe
um vago pó e um perfume.
Acaso será a poesia?


(VITALE, Ida. Não Sonhar Flores. Tradução de Heloisa Jahn. 
Rio de Janeiro: Roça Nova, 2020, pág. 139. O original pode ser encontrado neste endereço)

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...