quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A determinação de Ulisses



Ulysses and Calypso (Arnold Böcklin, 1883)

   Na Odisseia, Ulisses nos demonstra diferentes faces: a magnânima e a vingativa, a sagaz e a displicente, a humilde e a arrogante. A mais expressiva delas, porém, é a face determinada: apesar de todas as agruras que enfrenta durante o retorno ao lar – a perversidade de Polifemo, a ira de Netuno, a violência dos canibais na Lestrigônia, a ferocidade de Cila e Caríbdis –, o herói jamais deixa a imagem de Ítaca esvaecer-se em seu coração. 
    Lemos, no canto V, a determinação de Ulisses brilhar muito claramente. Calipso, apaixonada, oferece ao guerreiro a chance de tornar-se imortal, mas vê recusada a oferta. Mesmo diante da invejável oportunidade de gozar do amor divino e eterno, Ulisses diz à ninfa que um só anseio lhe aferroa o âmago: retornar à sua terra para recuperar os bons tempos com sua querida Penélope e com seu jovem Telêmaco. E a esse anseio prova-se leal.


Na belíssima tradução de Alexander Pope:

At the cool cave arrived, they took their state;
He filled the throne where Mercury had sat.
For him the nymph a rich repast ordains,
Such as the mortal life of man sustains;
Before herself were placed the cates divine,
Ambrosial banquet and celestial wine.
Their hunger satiate, and their thirst repress’d,
Thus spoke Calypso to her godlike guest:

“Ulysses! (with a sigh she thus begin);
O sprung from gods! in wisdom more than man!
Is then thy home the passion of thy heart?
Thus wilt thou leave me, are thou thus to part?
Farewell! and ever joyful mayst thou be,
Nor break the transport with one thought of me.
But ah, Ulysses! wert thou given to know
What Fate yet dooms these still to undergo,
Thy heart might settle in this scene of ease,
And e’en these slighted charms might learn to please.
A willing goddess, and immortal life
Might banish from thy mind and absent wife.
Am I inferior to a mortal dame?
Less soft my feature, less august my frame?
Or shall the daughters of mankind compare
Their earth born beauties with the heavenly fair?”

“Alas! for this (the prudent man replies)
Against Ulysses shall thy anger rise?
Love and adored, O goddess as thou art,
Forgive the weakness of a human heart.
Though well I see thy graces far above
The dear, though mortal, object of my love,
Of youth eternal well the difference know,
And the short date of fading charms below;
Yet every day, while absent thus I roam,
I languish to return and die at home.
Whate’er the gods shall destine me to bear
In the black ocean or the watery war,
’Tis mine to master with a constant mind;
Inured to perils, to the worst resign’d,
By seas, by wars, so many dangers run;
Still I can suffer: their high will be done!”

(versos 248 – 287)


E na tradução de Trajano Vieira para o nosso vernáculo:

(...) À gruta
ambos chegaram, deusa e herói. O trono, o mesmo
oferecido a Hermes, Odisseu ocupa.
Calipso lhe serviu opíparos manjares
e vinho, nutrientes dos humanos. Senta-se
exatamente à frente Odisseu divino,
e fâmulas lhe trazem néctar e ambrósia.
Pronto o banquete lauto, as mãos dos dois avançam.
Saciados de beber e de comer, Calipso,
preclara, fala: “Multiastuto Laetríade,
desejas efetivamente retornar
à terra ancestre, renegando minha casa?
Pois vá, que eu te saúdo! Ciente da aflição
que é teu destino padecer anteriormente
a pôr os pés em Ítaca, guardião do lar
em que hoje estás, comigo ficarias, sem
morrer, embora ansioso de rever a esposa
com quem, ao longo das jornadas, tens sonhado.
E eu me envaideço de não lhe ficar atrás
na forma física e expressão, pois forma e corpo
mortais não se comparam com imperecíveis.”
E o pluriarguto respondeu: “Sublime deusa,
comigo não te agastes: sei perfeitamente
bem que a estatura e as curvas da consorte sábia
são inferiores às que alguém encontra em ti:
eterna desconheces (ela não) velhice.
Mas, mesmo assim, o meu anseio-mor é ver
o dia do retorno em que eu adentre o lar.
E se um dos deuses me afundar no oceano vinho,
suportarei, pois trago no ânimo a paciência,
tantos reveses padeci, tantas angústias
nas ôndulas, na guerra, às quais acresço estas.”
(versos 193 – 224)

Departure of Ulysses (Samuel Palmer, 1848-49)

    Como Homero nos ensina, enfrentaremos, em nossas jornadas, mares tempestuosos. Devemos, então, agarrar-nos aos mastros de nossos navios, compreender o movimento das ondas, atentar-nos aos ventos e, sobretudo, jamais perder de direção nossas próprias Ítacas.

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