quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Albert Camus: necessidade do impossível

 


   Suetônio escreve que Calígula dava ordens para remover as cabeças das estátuas de deuses e as substituí-las com cópias de sua própria, e que, de vez em quando, expressava o desejo de “uma terrível derrota militar, uma carestia, uma praga, um grande incêndio ou um terremoto”*.
    O Calígula de Albert Camus (1913-1960) assemelha-se muito ao de Suetônio: ambos querem ser deuses e têm caprichos nefastos. Na peça de 1945, o imperador se vê atormentado pela contradição de ser o homem mais poderoso do mundo, e, ainda assim, compreender que seu poder está limitado à condição terrena da realidade. Resulta, daí, um salto: Calígula passa a superar os limites morais, esfacelar a razão e esbanjar veleidades delirantes – caberia perfeitamente, em suas falas, o desejo de uma derrota militar, uma carestia, uma praga, um grande incêndio, um terremoto. E talvez seja por isso que entre na história de que tanto zomba.

    CALIGULA
    (...) Mais je ne suis pas fou et même je n’ai jamais été aussi raisonnable. Simplement, je me suis senti tout d’un coup un besoin d’impossible. (Un temps.) Les choses, telles qu’elles sont, ne me semblent pas satisfaisantes.
    HÉLICON
    C’est une opinion assez répandue.
    CALIGULA
    II est vrai. Mais je ne le savais pas auparavant. Maintenant, je sais. (Toujours naturel.) Ce monde, tel qu’il est fait, n’est pas supportable. J’ai donc besoin de la lune, ou du bonheur, ou de l’immortalité, de quelque chose qui soit dément peut-être, mais qui ne soit pas de ce monde.

    CALÍGULA
   (...) Mas eu não sou louco e, de fato, nunca fui tão razoável. Simplesmente, senti de súbito uma necessidade do impossível. (Pausa) As coisas, tais como são, não me parecem satisfatórias.
    HÉLICON
    É uma opinião bastante comum.
    CALÍGULA
    De fato. Mas antes não o sabia. Agora, sei. (Sempre com naturalidade) Este mundo, tal como é feito, não é suportável. Sinto necessidade então da lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa que seja demente talvez, mas que não seja deste mundo.



(Albert Camus. Caligula suivi de Le malentendu.
Paris: Gallimard, 2019, pág. 26)

*Lives of the Caesars, traduzido por Catherine Edwards, pág. 153. 

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