quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

T. S. Eliot: cem anos de The Waste Land

 


    Neste 2022, completam cem anos os versos de The Waste Land (A Terra Desolada), de Thomas Stearns Eliot (1888-1965).
   Testemunha da destruição em escala industrial da Primeira Guerra Mundial, Eliot valeu-se de metáforas intrincadas, metros fragmentários e vozes alternantes para capturar liricamente a alma de um tempo de moralidade em degeneração e sonhos esterilizados. Um século mais tarde, afligem-nos ainda sentimentos de esgotamento, declínio e liquidez social.
    O título do poema refere-se à lenda arturiana do rei pescador: incumbido de guardar o Santo Graal, sua impotência o impede de ter filhos e compromete a fertilidade de todo o seu reino, que se torna um lugar árido. E logo percebemos as semelhanças entre o mundo da lenda e o nosso.
   A longa extensão, citações em diferentes línguas e constantes alusões a Homero, a Dante, a Shakespeare, a Baudelaire, à Bíblia e ao espiritualismo hindu podem afastar leitores que creiam ser Eliot excessivamente elitista. Mas as dificuldades se somam à mensagem da obra. The Waste Land, afinal, é um monumento à luta por algum significado para a existência — um monumento à necessidade de superarmos, através da fé e da arte, a desilusão, o cansaço e a tristeza.

April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.

(...)

                    I sat upon the shore
Fishing, with the arid plain behind me
Shall I at least set my lands in order?
(...)
Datta. Dayadhvam. Damyata.
                    Shantih shantih shantih



Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.

(...)

                    Sentei-me junto às margens a pescar
Deixando atrás de mim a árida planície.
Terei ao menos minhas terras posto em ordem?
(...)
Datta. Dayadhvam. Damyata.
                    Shantih shantih shantih

The Menin Road, Paul Nash (1919)

(O poema original pode ser encontrado neste endereço;
o PDF com a tradução para o português de Ivan Junqueira, neste)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Albert Camus: necessidade do impossível

 


   Suetônio escreve que Calígula dava ordens para remover as cabeças das estátuas de deuses e as substituí-las com cópias de sua própria, e que, de vez em quando, expressava o desejo de “uma terrível derrota militar, uma carestia, uma praga, um grande incêndio ou um terremoto”*.
    O Calígula de Albert Camus (1913-1960) assemelha-se muito ao de Suetônio: ambos querem ser deuses e têm caprichos nefastos. Na peça de 1945, o imperador se vê atormentado pela contradição de ser o homem mais poderoso do mundo, e, ainda assim, compreender que seu poder está limitado à condição terrena da realidade. Resulta, daí, um salto: Calígula passa a superar os limites morais, esfacelar a razão e esbanjar veleidades delirantes – caberia perfeitamente, em suas falas, o desejo de uma derrota militar, uma carestia, uma praga, um grande incêndio, um terremoto. E talvez seja por isso que entre na história de que tanto zomba.

    CALIGULA
    (...) Mais je ne suis pas fou et même je n’ai jamais été aussi raisonnable. Simplement, je me suis senti tout d’un coup un besoin d’impossible. (Un temps.) Les choses, telles qu’elles sont, ne me semblent pas satisfaisantes.
    HÉLICON
    C’est une opinion assez répandue.
    CALIGULA
    II est vrai. Mais je ne le savais pas auparavant. Maintenant, je sais. (Toujours naturel.) Ce monde, tel qu’il est fait, n’est pas supportable. J’ai donc besoin de la lune, ou du bonheur, ou de l’immortalité, de quelque chose qui soit dément peut-être, mais qui ne soit pas de ce monde.

    CALÍGULA
   (...) Mas eu não sou louco e, de fato, nunca fui tão razoável. Simplesmente, senti de súbito uma necessidade do impossível. (Pausa) As coisas, tais como são, não me parecem satisfatórias.
    HÉLICON
    É uma opinião bastante comum.
    CALÍGULA
    De fato. Mas antes não o sabia. Agora, sei. (Sempre com naturalidade) Este mundo, tal como é feito, não é suportável. Sinto necessidade então da lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa que seja demente talvez, mas que não seja deste mundo.



(Albert Camus. Caligula suivi de Le malentendu.
Paris: Gallimard, 2019, pág. 26)

*Lives of the Caesars, traduzido por Catherine Edwards, pág. 153. 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A determinação de Ulisses



Ulysses and Calypso (Arnold Böcklin, 1883)

   Na Odisseia, Ulisses nos demonstra diferentes faces: a magnânima e a vingativa, a sagaz e a displicente, a humilde e a arrogante. A mais expressiva delas, porém, é a face determinada: apesar de todas as agruras que enfrenta durante o retorno ao lar – a perversidade de Polifemo, a ira de Netuno, a violência dos canibais na Lestrigônia, a ferocidade de Cila e Caríbdis –, o herói jamais deixa a imagem de Ítaca esvaecer-se em seu coração. 
    Lemos, no canto V, a determinação de Ulisses brilhar muito claramente. Calipso, apaixonada, oferece ao guerreiro a chance de tornar-se imortal, mas vê recusada a oferta. Mesmo diante da invejável oportunidade de gozar do amor divino e eterno, Ulisses diz à ninfa que um só anseio lhe aferroa o âmago: retornar à sua terra para recuperar os bons tempos com sua querida Penélope e com seu jovem Telêmaco. E a esse anseio prova-se leal.


Na belíssima tradução de Alexander Pope:

At the cool cave arrived, they took their state;
He filled the throne where Mercury had sat.
For him the nymph a rich repast ordains,
Such as the mortal life of man sustains;
Before herself were placed the cates divine,
Ambrosial banquet and celestial wine.
Their hunger satiate, and their thirst repress’d,
Thus spoke Calypso to her godlike guest:

“Ulysses! (with a sigh she thus begin);
O sprung from gods! in wisdom more than man!
Is then thy home the passion of thy heart?
Thus wilt thou leave me, are thou thus to part?
Farewell! and ever joyful mayst thou be,
Nor break the transport with one thought of me.
But ah, Ulysses! wert thou given to know
What Fate yet dooms these still to undergo,
Thy heart might settle in this scene of ease,
And e’en these slighted charms might learn to please.
A willing goddess, and immortal life
Might banish from thy mind and absent wife.
Am I inferior to a mortal dame?
Less soft my feature, less august my frame?
Or shall the daughters of mankind compare
Their earth born beauties with the heavenly fair?”

“Alas! for this (the prudent man replies)
Against Ulysses shall thy anger rise?
Love and adored, O goddess as thou art,
Forgive the weakness of a human heart.
Though well I see thy graces far above
The dear, though mortal, object of my love,
Of youth eternal well the difference know,
And the short date of fading charms below;
Yet every day, while absent thus I roam,
I languish to return and die at home.
Whate’er the gods shall destine me to bear
In the black ocean or the watery war,
’Tis mine to master with a constant mind;
Inured to perils, to the worst resign’d,
By seas, by wars, so many dangers run;
Still I can suffer: their high will be done!”

(versos 248 – 287)


E na tradução de Trajano Vieira para o nosso vernáculo:

(...) À gruta
ambos chegaram, deusa e herói. O trono, o mesmo
oferecido a Hermes, Odisseu ocupa.
Calipso lhe serviu opíparos manjares
e vinho, nutrientes dos humanos. Senta-se
exatamente à frente Odisseu divino,
e fâmulas lhe trazem néctar e ambrósia.
Pronto o banquete lauto, as mãos dos dois avançam.
Saciados de beber e de comer, Calipso,
preclara, fala: “Multiastuto Laetríade,
desejas efetivamente retornar
à terra ancestre, renegando minha casa?
Pois vá, que eu te saúdo! Ciente da aflição
que é teu destino padecer anteriormente
a pôr os pés em Ítaca, guardião do lar
em que hoje estás, comigo ficarias, sem
morrer, embora ansioso de rever a esposa
com quem, ao longo das jornadas, tens sonhado.
E eu me envaideço de não lhe ficar atrás
na forma física e expressão, pois forma e corpo
mortais não se comparam com imperecíveis.”
E o pluriarguto respondeu: “Sublime deusa,
comigo não te agastes: sei perfeitamente
bem que a estatura e as curvas da consorte sábia
são inferiores às que alguém encontra em ti:
eterna desconheces (ela não) velhice.
Mas, mesmo assim, o meu anseio-mor é ver
o dia do retorno em que eu adentre o lar.
E se um dos deuses me afundar no oceano vinho,
suportarei, pois trago no ânimo a paciência,
tantos reveses padeci, tantas angústias
nas ôndulas, na guerra, às quais acresço estas.”
(versos 193 – 224)

Departure of Ulysses (Samuel Palmer, 1848-49)

    Como Homero nos ensina, enfrentaremos, em nossas jornadas, mares tempestuosos. Devemos, então, agarrar-nos aos mastros de nossos navios, compreender o movimento das ondas, atentar-nos aos ventos e, sobretudo, jamais perder de direção nossas próprias Ítacas.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Virginia Woolf: solidão e sonhos

 


    Mrs. Dalloway, de 1925, uma das obras mais célebres de Virginia Woolf (1882-1941), impacta-nos menos pela trama de seu enredo do que pelo poder de suas introspecções meditativas. Poucos são seus diálogos; por outro lado, suas divagações são muitas, e nelas residem temas profundos da experiência humana.
   A passagem a seguir explora o contraste entre a turbulência da vida urbana e o distanciamento particular da mente. Clarissa Dalloway – que dá título à obra –, caminhando a mais um dia de compras, cessa o passo durante um momento a fim de contemplar o bulício da cidade e refletir sobre o mundo à sua volta. À medida que envelhece, Clarissa percebe ser mais difícil conhecer novas pessoas, versar-se em novos saberes e sair da rotina insípida que a aprisiona.
   A imagem de estar à deriva em alto-mar parece conotar-nos o sentimento de solidão, de alienação a tudo: Clarissa boia sem companhia alguma, apenas deixando-se levar pelo movimento calmo das águas enquanto acomete-lhe o sentimento de ser “muito, muito perigoso viver, mesmo que por um dia”. Eventualmente, ela percebe que todas as pessoas enfrentam sozinhas as mesmas agruras no oceano da vida. E que, apesar da massiva quantidade de humanos a coexistir num centro urbano tão povoado como Londres, a solidão embrenha-se em toda parte.

    She had reached the Park gates. She stood for a moment, looking at the omnibuses in Piccadilly.
    She would not say of any one in the world now that they were this or were that. She felt very young; at the same time unspeakably aged. She sliced like a knife through everything; at the same time was outside, looking on. She had a perpetual sense, as she watched the taxicabs, of being out, out, far out to sea and alone; she always had the feeling that it was very, very dangerous to live even one day. Not that she thought herself clever, or much out of the ordinary. How she had got through life on the few twigs of knowledge Fräulein Daniels gave them she could not think. She knew nothing; no language, no history; she scarcely read a book now, except memoirs in bed; and yet to her it was absolutely absorbing; all this; the cabs passing; and she would not say of Peter, she would not say of herself, I am this, I am that.
    (…) Did it matter then, she asked herself, walking towards Bond Street, did it matter that she must inevitably cease completely; all this must go on without her; did she resent it; or did it not become consoling to believe that death ended absolutely?

    Chegara aos portões do parque. Ficou parada por um instante, observando os ônibus em Piccadilly.
   A partir de agora, não ousaria dizer de pessoa alguma que era isto ou aquilo. Sentia-se bastante jovem; ao mesmo tempo, indescritivelmente velha. Ela dissecava tudo qual uma lâmina; ao mesmo tempo, estava ali fora, contemplando. Tinha a perpétua sensação, enquanto observava os táxis, de estar distante, distante, bem distante em alto-mar, sozinha; sempre teve a sensação de que era muito, muito perigoso viver, mesmo que por um dia. Não que se julgasse esperta ou fora do comum. Nem sabia dizer como enfrentava a vida com as poucas migalhas de conhecimento que Fräulein Daniels transmitira a ela e à irmã. Não dominava nada; nenhuma língua, nada de história; mal lia livros hoje em dia, exceto memórias antes de dormir; e, contudo, para ela isso era absolutamente cativante; tudo isso; os táxis de passagem; e não ousaria falar de Peter, não ousaria falar de si mesma, sou isto, sou aquilo.
    (...) Importava, então, perguntou a si mesma, caminhando para a Bond Street, importava que ela inevitavelmente deixasse de existir por completo? Tudo há de seguir sem ela; e ela se ressentia por tal motivo, ou não seria reconfortante acreditar que a morte era um fim absoluto?


(Virginia Woolf. Mrs. Dalloway. London: Hogarth Press, 1925).

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...