quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Anna Akhmátova: viver com simplicidade

 


    Embora sigam afligindo-nos as tantas incertezas eleitorais do momento, podemos ainda encontrar um refúgio na poesia. Estes versos de Anna Akhmátova (1889-1966) exalam os bons aromas da natureza e da paz que suaviza as dores do mundo: retornamos, aqui, a uma existência simples, a um doce fluxo de vida no qual cabem as contemplações do céu e as ronronadas doces de um gato amigo. 
    Akhmátova deixa-se diluir em uma placidez tão profunda, que, se batermos à sua porta, diz-nos ela, não seremos capazes de removê-la do estado de consciência em que se encontra: uma vida caduca, caduca e belíssima.

*
Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.

Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.

Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.

Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.

(1912)


(Anna Akhmátova. Antologia Poética. Tradução de Lauro Machado Coelho. 
Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009. pág. 60)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Octavio Paz: a poesia

 



     Ao agraciar Octavio Paz (1914-1998) com o Nobel de 1990, a Academia Sueca louvou-lhe a “escrita apaixonada com amplos horizontes, caracterizada por uma inteligência sensual e integridade humanística”.
    Destaca-se, dentre tantas obras já consagradas de Paz, El Arco y la Lira, de 1956. E é de suas primeiras linhas que extraímos uma definição bem extensa sobre o que parece ser a poesia: Paz corre o risco de toda a redundância; recheia-se de aproximações, de efeitos retóricos, de achados magníficos. E tece, assim, um hino de amor à arte poética.

    La poesía es conocimiento, salvación, poder, abandono. Operación capaz de cambiar al mundo, la actividad poética es revolucionaria por naturaleza; ejercicio espiritual, es un método de liberación interior. La poesía revela este mundo; crea otro. Pan de los elegidos; alimento maldito. Aisla; une. Invitación al viaje; regreso a la tierra natal. Inspiración, respiración, ejercicio muscular. Plegaria al vacío, diálogo con la ausencia: el tedio, la angustia y la desesperación la alimentan. Oración, letanía, epifanía, presencia. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimación, compensación, condensación del inconsciente. Expresión histórica de razas, naciones, clases. Niega a la historia: en su seno se resuelven todos los conflictos objetivos y el hombre adquiere al fin conciencia de ser algo más que tránsito. Experiencia, sentimiento, emoción, intuición, pensamiento no dirigido. Hija del azar; fruto del cálculo. Arte de hablar en una forma superior; lenguaje primitivo. Obediencia a las reglas; creación de otras. Imitación de los antiguos, copia de lo real, copia de una copia de la idea. Locura, éxtasis, logos. Regreso a la infancia, coito, nostalgia del paraíso, del infierno, del limbo. Juego, trabajo, actividad ascética. Confesión. Experiencia innata. Visión, música, símbolo. Analogía: el poema es un caracol en donde resuena la música del mundo y metros y rimas no son sino correspondencias, ecos, de la armonía universal. Enseñanza, moral, ejemplo, revelación, danza, diálogo, monólogo. Voz del pueblo, lengua de los escogidos, palabra del solitario. Pura e impura, sagrada y maldita, popular y minoritaria, colectiva y personal, desnuda y vestida, hablada, pintada, escrita, ostenta todos los rostros pero hay quien afirma que no posee ninguno: el poema es una careta que oculta el vacío, ¡prueba hermosa de la superflua grandeza de toda obra humana!

    A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; retorno à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio todos os conflitos objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar de uma forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da ideia. Loucura, êxtase, logos. Retorno à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo e metros e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todos os rostos mas há quem afirme que não possui nenhum: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!


(Octavio Paz. El Arco y la Lira. México: ePubLibre, 1956).

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Derek Walcott: O Punho

 


    No poema a seguir, o santa-lucense Derek Walcott (1930-2017) vale-se de palavras simples para comunicar-nos a natureza ambígua do amor. The Fist (O Punho) nos mostra que o amor nos asfixia, causa-nos dor e nos rouba da razão – e que é desse sofrimento que nosso coração se alimenta. Porque amar, embora tantas vezes nos seja um ato amargo, é essencial à própria vida; a necessidade do amor nos faz viver.


THE FIST

The fist clenched round my heart
loosens a little, and I gasp
brightness; but it tightens
again. When have I ever not loved
the pain of love? But this has moved

past love to mania. This has the strong
clench of the madman, this is
gripping the ledge of unreason, before
plunging howling into the abyss.

Hold hard then, heart. This way at least you live.


O PUNHO

O punho que me aperta o coração
afrouxa um pouco, e eu arquejo
luminoso; mas ele espreme
de novo. Quando foi que não amei
a dor de amar? Mas isto fez ser

mania o amor de outrora. Isto tem o severo
aperto do homem louco, isto
atordoa à beira do delírio, antes
do mergulho uivante no abismo.

Firme então, coração. Assim, pelo menos tu vives. 


(Derek Walcott. Sea Grapes. EUA: Macmillan Publishers, 1971).

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

O Nobel de 2022

 


    Como de costume, acompanhei ansiosamente nesta manhã o anúncio do novo laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. E a Academia Sueca, confirmando as principais previsões, concedeu a honraria à prosadora francesa Annie Ernaux “pela coragem e acuidade clínica com que ela descobre as raízes, distanciamentos e restrições coletivas da memória pessoal”. O último escritor da França a vencer o Nobel havia sido Patrick Modiano, em 2014.
    Devo confessar que sei pouco a seu respeito. Li dela apenas um pequeno livro, “O Lugar”, que trata da vida de seu próprio pai – um camponês normando que se tornou um pequeno comerciante e, se não chegou a enriquecer, conseguiu sustentar a família de forma digna, até enviando a filha à universidade – para minuciar relações familiares e de classe, formando uma mistura entre história pessoal e sociologia.
    Achei o prêmio justo, embora minha torcida fosse para algum escritor de nossa língua, como Mia Couto, ou para algum poeta – Adonis, Ko Un ou Charles Simic, principalmente.

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...