Embora sigam afligindo-nos as tantas incertezas eleitorais do momento, podemos ainda encontrar um refúgio na poesia. Estes versos de Anna Akhmátova (1889-1966) exalam os bons aromas da natureza e da paz que suaviza as dores do mundo: retornamos, aqui, a uma existência simples, a um doce fluxo de vida no qual cabem as contemplações do céu e as ronronadas doces de um gato amigo.
Akhmátova deixa-se diluir em uma placidez tão profunda, que, se batermos à sua porta, diz-nos ela, não seremos capazes de removê-la do estado de consciência em que se encontra: uma vida caduca, caduca e belíssima.
*
Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.
(1912)
(Anna Akhmátova. Antologia Poética. Tradução de Lauro Machado Coelho.
Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009. pág. 60)
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