quarta-feira, 26 de abril de 2023

Sophia de Mello: As Pessoas Sensíveis

 


    No poema a seguir, o eu lírico da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) dirige-se àqueles que, “sensíveis”, exploram o suor de terceiros para atingir seus objetivos: não são capazes de sujar as próprias mãos com o sangue de animais, mas com sua carne se deleitam.
    Parece-me muito apropriado ver nestes versos uma alegoria do estado de hipocrisia em que nossa sociedade está atolada, bem como de nosso modelo econômico predatório, cujos próceres cotidianamente se beneficiam da crueldade e da injustiça, mesmo que não raro sejam louvados. Ao final, o eu lírico inverte um verso bíblico, a fim de sacramentar sua mordacidade crítica: “Perdoai-lhes, Senhor, porque eles sabem o que fazem”.


AS PESSOAS SENSÍVEIS

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem


(ANDRESEN, S.M.B. As Pessoas Sensíveis
In: Obra Poética. Porto: Porto Editora, 2015, p. 462-3.)

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