quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O grito do Ipiranga

 

    
    Em setembro de 1876, Machado de Assis (1839-1908) publicou uma crônica sobre o famoso grito do Ipiranga. A propósito da data, transcrevo-a aqui: fique-nos, para este bicentenário de nossa independência, as agudas reflexões que Machado propunha. E, ironias à parte, que sejam mais prósperos, democráticos e inclusivos os próximos séculos do Brasil.

    Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século. 
    Segundo o ilustrado paulista, não houve nem grito nem Ipiranga.
   Houve algumas palavras, entre elas Independência ou Morte, – as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga.
    Pondera o meu amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos.
   Ninguém ignora a que estado reduziram a história romana alguns autores alemães, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos.
    Vá feito! O tempo decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma ideia fixa.
   Demais, que Numa Pompílio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a moderna civilização.
    Certamente é belo que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade... e pretendentes.
    Mas isso é história antiga.
   O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinquenta a quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido.
   Houve resolução do príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.
    Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos.
    Emendam-se as futuras edições. Mas os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade.
  Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.

(Machado de Assis. Obras Completas, Volume III.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962, págs. 346 e 347).

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