sexta-feira, 30 de setembro de 2022

A arte de conhecer a si mesmo


 


    Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi um homem recluso, misantropo e pessimista, mas rendeu lições prodigiosas à posteridade, como que confirmando a máxima aristotélica de que o indivíduo solitário é um deus ou uma besta.
    Schopenhauer extrai o conhecimento de si mesmo da filosofia moral, de sua experiência particular e de sua invejável familiaridade com a cultura clássica – grega e oriental. E não se limita a manuseá-lo de maneira abstrata: pratica-o como sabedoria concreta de vida.

   Querer o menos possível e conhecer o mais possível, eis a máxima que conduziu minha trajetória de vida. Pois a vontade é o que há de mais comum e de pior em nós. Devemos ocultá-la como se faz com a genitália, embora ambos sejam a raiz de nosso ser. Minha vida é heroica e não pode ser avaliada pelo metro do filisteu, ou com o cúbito do merceeiro, muito menos pela medida do homem comum, que não possui outra existência senão a do indivíduo limitada a um curto espaço de tempo. Portanto, não posso me afligir ao pensar que me faltam coisas que fazem parte da trajetória normal de um indivíduo: emprego, casa, jardim, esposa e filho. A existência desses indivíduos transcorre de maneira sempre igual. Já a minha vida, ao contrário, é intelectual, e seu desenvolvimento regular e atividade constante têm de produzir frutos nos poucos anos de pleno poder espiritual e de sua livre utilização, e, assim, por séculos enriquecer a humanidade. Minha vida pessoal é tão-somente a base para a intelectual, a conditio sine qua non, ou seja, algo totalmente secundário. Quanto mais estreita for esta base, tanto mais segura; e se realizar o que deve com relação à minha vida intelectual, terá atingido o seu fim. O instinto, que é próprio a todos aqueles que têm objetivos intelectuais, também se tornou um guia seguro para mim, de forma que deixei de lado os interesses pessoais e tudo concentrei em minha existência espiritual. Por isso também o fato de a trajetória de minha vida parecer desconexa e destituída de plano não pode me surpreender: ela se assemelha ao acompanhamento na harmonia, que igualmente não pode conter em si nexo algum, visto que serve apenas de fundo para a voz principal, na qual se encontra o nexo. As coisas de que necessariamente sou privado em minha vida pessoal me são compensadas de outra maneira, ao longo da vida, pelo pleno gozo do meu espírito e empenho em favor de sua orientação inata; de fato, se as possuísse, não as fruiria, e ser-me-iam até mesmo impeditivas. Para um espírito que doa e realiza por si mesmo aquilo que nenhum outro pode da mesma forma doar e realizar, e que justamente por isso subsiste e perdurará – seria ao mesmo tempo cruel e insano querer forçá-lo a fazer outras coisas, ou mesmo atribuir-lhe tarefas obrigatórias, afastando-o do seu dom natural.

(Arthur Schopenhauer. A arte de conhecer a si mesmo. Tradução de Jair Barbosa 
e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pág. 3).


quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O ideal clássico

 


      Escreve o historiador Henri-Irénée Marrou:

    « Mais revenons à la technique : l’idéal de la culture classique est en somme à la fois antérieur et transcendant à toute spécification technique. Antérieur : l’esprit une fois formé est une force admirable, parfaitement libre, totalement disponible pour n’importe quelle tâche particulière. (…)
    D’autre part, l’idéal classique transcende la technique : humain au départ, l’homme cultivé, même s’il devient un spécialiste hautement qualifié, doit se préoccuper de rester avant tout un homme.
    (...) Les classiques nous répètent que toute institution, toute connaissance, toute technique ne doivent jamais devenir une fin en soi : maniées par des hommes, au service de l’homme, elles doivent toujours se subordonner dans leur exercice et dans leurs résultats à cette valeur suprême : l’humain. »

  “Mas voltemos à técnica: em suma, o ideal da cultura clássica é ao mesmo tempo anterior e transcendente a toda especificação técnica. Anterior: o espírito, uma vez formado, é uma força admirável, perfeitamente livre, totalmente disponível para qualquer tarefa particular. (...)
   Por outro lado, o ideal clássico transcende a técnica: humano em princípio, o homem cultivado, mesmo que se torne um especialista altamente qualificado, deve preocupar-se com permanecer, antes de tudo, um homem.
    (...) Os clássicos nos repetem que nenhuma instituição, nenhuma técnica deve jamais vir a ser um fim em si: manuseadas por homens, a serviço do homem, elas devem sempre se subordinar, em seu emprego e em seus resultados, a este valor supremo: o humano.”

(Henri-Irénée Marrou. Histoire de l’éducation dans l’Antiquité : Le monde grec.
Paris: Éditions du Seuil, 1948, págs. 334 e 335).

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O grito do Ipiranga

 

    
    Em setembro de 1876, Machado de Assis (1839-1908) publicou uma crônica sobre o famoso grito do Ipiranga. A propósito da data, transcrevo-a aqui: fique-nos, para este bicentenário de nossa independência, as agudas reflexões que Machado propunha. E, ironias à parte, que sejam mais prósperos, democráticos e inclusivos os próximos séculos do Brasil.

    Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século. 
    Segundo o ilustrado paulista, não houve nem grito nem Ipiranga.
   Houve algumas palavras, entre elas Independência ou Morte, – as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga.
    Pondera o meu amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos.
   Ninguém ignora a que estado reduziram a história romana alguns autores alemães, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos.
    Vá feito! O tempo decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma ideia fixa.
   Demais, que Numa Pompílio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a moderna civilização.
    Certamente é belo que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade... e pretendentes.
    Mas isso é história antiga.
   O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinquenta a quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido.
   Houve resolução do príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.
    Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos.
    Emendam-se as futuras edições. Mas os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade.
  Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.

(Machado de Assis. Obras Completas, Volume III.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962, págs. 346 e 347).

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...