No texto a seguir, o meu amigo Alexandre Lobo retorna ao rei da Lídia para encontrar o espelho de uma angústia muito moderna — aquela que, indefinível, nasce do anseio por amor, por pertencimento, por sentido. Em ecos de Lenz, de Büchner e, mais importante, de Eckhart, Tantalising Detachment (título que, por sua elegância, prefiro manter idêntico na tradução ao nosso vernáculo) traça um caminho sinuoso que culmina, necessariamente, na redenção através do desapego, a maior das virtudes: Tântalo deverá perceber “que os deuses jamais lhe deviam coisa alguma e que ele próprio causou sua punição”. Assim, ele talvez passe a ver na dor um “caminho para a salvação” e descubra, como cabe a nós descobrir, “que tudo de que precisa já está dentro de si próprio”.
Tantalising Detachment
Merriam-Webster as such defines the word tantalise: to tease or torment by or as if by presenting something desirable to the view but continually keeping it out of reach. Its etymology has its roots—as all good things—in Ancient Greece. It references the cruel fate that beset Tantalus, the ancient king of Lydia. Let us turn to Chapman’s Homer, in the closing verses of The Odysseys’ eleventh book, for a detailed depiction of Tantalus’s punishment:
[ - - ] I saw likewise stand, ◡ ◡ ◡
Up to the chin, amidst a liquid lake,
Tormented Tantalus, yet could not slake
His burning thirst. Oft as his scornful cup
Th’ old man would taste, so oft ’twas swallow’d up,
And all the black earth to his feet descried,
Divine pow’r (plaguing him) the lake still dried.
About his head, on high trees, clust’ring, hung
Pears, apples, granates, olives ever-young,
Delicious figs, and many fruit-trees more
Of other burden; whose alluring store
When th’ old soul striv’d to pluck, the winds from sight,
In gloomy vapours, made them vanish quite.
On Lenz’s Tantalus, a unique and ultimately revealing aspect of it is that, unlike the ancient sources which reveal Tantalus’s crime, various and heinous as they are, the German poet does not explicitly reveal any wrongdoing on the part of the Greek king, and instead brings to prominence the description of the his torment and particularly its nature as a mere farce for the Gods’ cruel amusement. The absence of a crime and thus the lack of justification for this supposed punishment insinuates the poet’s intention to appropriate the myth so as to convey his own supposedly unjust fall from his Pantheon in Weimar.
The dramolet, as Lenz describes it, follows as thus: Mercury and Phœbus laugh condescendingly at the mortal Tantalus as they learn he has fallen in love with Juno. They hide when he finally appears onstage; he is tantalised by an image of the goddess in the cloud, which disappears as soon as he gazes upon it, only to again reappear when he isn’t looking attentively. Cupid then enters and reveals his ultimate fate: nothing that he desires shall ever be conceded.
Who could admit they have never felt an agony such as the one allegorised by the misfortunes of Tantalus? Whose deepest desires have never been met by life by rejection and cruel derision, as if the Gods themselves wanted to remind one of their impotence? And how slippery indeed the slope to wallow in self-pity is! How easy it is to see Tantalus, chin-deep into a lake of sweet water, looking down, gazing upon his reflection, and finding instead the familiar figure we identify as… ourselves! It is indeed a testament to the everlasting greatness of the Greeks that even today we may find wisdom and solace in their myths. But perhaps we can extract an even greater wisdom from this story by relating it to a work I recently came across by Meister Eckhart.
On Detachment is a short text proposing detachment as the highest virtue tenable to man, for it is by detaching oneself from all of the joys, sorrows, pains and pleasures of life—a state Eckhart describes as so nearly nothing—that one’s soul becomes more readily opened to the love of God—and thus closed to the rest of the world. Eckhart even raises it above the virtue of humility, stating that humility can exist without detachment, but the same cannot be said of the opposite, and two virtues are always better than one.
Now, what is not explicitly posited but can be implicitly inferred is that attachment, the opposite of detachment, makes one prone to suffer the woes characterised by the outer—and often unchangeable—circumstances of life. Such a vice is epitomised by our dear Tantalus, who is tortured only inasmuch as he is tormented by his desires—which, it must be reminded, is what brought about his punishment in the first place. In Lenz, we find his castigation in the constant and almost provoking disappearance of the image of his beloved, but only because she is precisely the object of his desire. Tantalus is thus his own prisoner, for he is not free from his most oppressive shackles: his desires, which stem, of course, from his attachments to whatever it is he believes his desires will achieve. Perhaps it is the glory of the seat at the feasts of Mount Olympus or quite simply the acceptance and recognition from the Gods, whom he looks up to.
At the end of the drama, Cupid warns Tantalus not to reach for anything that does not belong to him—with this in mind, we must ask ourselves what, after all, rightfully belongs to us? Perhaps Tantalus may one day realise that the Gods never owed him anything and that he brought his punishment upon himself. Perhaps he may one day be free from all desire and may embrace the inherent suffering of his life and fate as a path to salvation. Perhaps he may realise that all he truly needs may be found within himself. Perhaps, then, we could imagine Tantalus happy.
--
Tantalising Detachment
Vi Tântalo também, num lago imenso
Que o mento lhe banhava, ardendo em sede.
Pois, a apagá-la se perdia o velho,
A água absorta escoando-se, um demônio
Aos pés seco atro lodo lhe mostrava.
Sobre a cabeça corpulentos galhos
Suspendiam-se frutas sazonadas,
Figos doces, romãs, pêras e olivas;
Mas, se o velho faminto ia colhê-las,
O vento as levantava às densas nuvens.*
(vv.456-465)
O mito daquele que é talvez o mais sobrecarregado de infortúnios — possível origem, segundo nos diz Platão em seu Crátilo, do próprio nome “Tântalo” — chamou-me a atenção ao ler acerca de Jakob Michael Reinhold Lenz, o poeta esquecido e desafortunado cuja fama hoje repousa mais sobre a novela inacabada escrita a seu respeito por Georg Büchner do que sobre sua própria obra. Permitam-me uma breve explicação. No início da década de 1770, Lenz era um jovem poeta representativo do movimento Sturm und Drang, mas suas tentativas de consolidar uma reputação no círculo intelectual de Weimar terminaram em desgraça — aparentemente, por causa de sua própria natureza caprichosa. Nesse período, era conhecido de Goethe, que, embora ainda em ascensão, já era então uma figura estabelecida na corte de Weimar. Pareciam amigos, mas à medida que a posição social de Lenz se deteriorava, também se deteriorava sua relação com Goethe, e, disto, o jovem acabaria por ressentir-se profundamente. Ferido pela rejeição de Weimar, o sensível Lenz respondeu com a publicação de Tantalus, um pequeno drama em versos inspirado no mito grego, que mal esconde a identificação do próprio autor com o rei homônimo.
O mito daquele que é talvez o mais sobrecarregado de infortúnios — possível origem, segundo nos diz Platão em seu Crátilo, do próprio nome “Tântalo” — chamou-me a atenção ao ler acerca de Jakob Michael Reinhold Lenz, o poeta esquecido e desafortunado cuja fama hoje repousa mais sobre a novela inacabada escrita a seu respeito por Georg Büchner do que sobre sua própria obra. Permitam-me uma breve explicação. No início da década de 1770, Lenz era um jovem poeta representativo do movimento Sturm und Drang, mas suas tentativas de consolidar uma reputação no círculo intelectual de Weimar terminaram em desgraça — aparentemente, por causa de sua própria natureza caprichosa. Nesse período, era conhecido de Goethe, que, embora ainda em ascensão, já era então uma figura estabelecida na corte de Weimar. Pareciam amigos, mas à medida que a posição social de Lenz se deteriorava, também se deteriorava sua relação com Goethe, e, disto, o jovem acabaria por ressentir-se profundamente. Ferido pela rejeição de Weimar, o sensível Lenz respondeu com a publicação de Tantalus, um pequeno drama em versos inspirado no mito grego, que mal esconde a identificação do próprio autor com o rei homônimo.
É mais ou menos dois anos após isso que se passa a novela de Büchner, retratando um período da vida de Lenz marcado por doença mental e múltiplas tentativas de suicídio. A obra baseia-se nos diários de Jean Fréderic Oberlin, um pastor que tentou, em vão, curar os males mentais, físicos e espirituais do poeta.
Em Tantalus, uma característica singular e reveladora é que, ao contrário das fontes antigas que revelam os crimes de Tântalo — variados e hediondos —, o poeta alemão não menciona nenhuma culpa explícita por parte do rei, focando-se antes na descrição do seu tormento e, particularmente, em sua natureza farsesca, montada para divertimento cruel dos deuses. A ausência de culpa, e portanto de justificativa para o castigo, sugere a intenção do poeta de apropriar-se do mito para expressar sua própria queda, que julgava injusta, do Panteão de Weimar.
O dramolet, como Lenz o descreve, segue assim: Mercúrio e Febo riem com desdém do mortal Tântalo ao descobrirem que ele se apaixonou por Juno. Escondem-se quando o rei finalmente entra em cena; Tântalo é atormentado por uma imagem da deusa nas nuvens, que desaparece tão logo ele a contempla e reaparece sempre que seu olhar se distrai. Cupido então entra e revela seu destino final: nada daquilo que deseja lhe será concedido.
Quem poderia afirmar que nunca sentiu uma agonia como a alegorizada nos infortúnios de Tântalo? Quem nunca viu seus desejos mais profundos serem rechaçados pela vida com zombaria, como se os próprios deuses quisessem lembrá-lo de sua impotência? E quão tênue é o limiar que nos conduz à autocomiseração! É fácil ver Tântalo, com a água doce até o queixo, olhando para baixo, buscando o próprio reflexo — e encontrando ali uma figura muito familiar: nós mesmos. É, de fato, um testemunho da grandiosidade eterna dos gregos que ainda hoje encontremos sabedoria e consolo em seus mitos. Mas talvez possamos extrair uma sabedoria ainda maior ao relacionar essa história com uma obra que recentemente encontrei de Meister Eckhart.
On Detachment é um breve texto que propõe o desapego como a mais alta virtude ao alcance do homem, pois é ao desapegar-se de todas as alegrias, dores, prazeres e sofrimentos da vida, em um estado que Eckhart descreve como sendo quase nada, que a alma se abre mais verdadeiramente ao amor de Deus — e, portanto, fecha-se ao mundo. Eckhart eleva o desapego inclusive acima da humildade, afirmando que esta pode existir sem o desapego, mas o contrário não se dá — e duas virtudes, afinal, são melhores que uma.
O que não é dito explicitamente, mas pode-se inferir, é que o apego, oposto do desapego, torna-nos propensos a sofrer com as contingências externas, frequentemente imutáveis, da vida. Um tal vício é personificado por nosso querido Tântalo, que é torturado apenas na medida em que é atormentado por seus desejos — e seus desejos, vale lembrar, foram justamente a causa de seu castigo. Em Lenz, seu martírio está na constante e quase provocadora desaparição da imagem de sua amada, mas somente porque ela é o objeto de seu desejo. Tântalo é, portanto, prisioneiro de si mesmo, pois não se liberta de suas algemas mais opressoras: seus desejos — que derivam, claro, dos apegos àquilo que ele crê que esses desejos lhe trarão. É possível, afinal, que queira a glória de um assento nas festas do Monte Olimpo, ou, então, simplesmente a aceitação e reconhecimento por parte dos deuses, que ele admira.
Ao final do drama, Cupido adverte Tântalo a não estender a mão para o que não lhe pertence. E, com isso em mente, devemos perguntar-nos: o que, afinal, realmente pertence a nós? Talvez, Tântalo um dia perceba que os deuses jamais lhe deviam coisa alguma e que ele próprio causou sua punição. Talvez, o rei um dia se liberte de todo desejo e abrace o sofrimento inerente à sua vida e destino como caminho para a salvação. Talvez, ele descubra que tudo de que precisa já está dentro de si próprio. Talvez, então, possamos imaginar Tântalo feliz.
*No original, o meu amigo dispôs os famosos versos da famosa tradução para o inglês de George Champan. Para fins de claridade, selecionei a tradução de Odorico Mendes.