terça-feira, 15 de outubro de 2024

Friedrich Nietzsche: O Nascimento da Tragédia



     Friedrich Nietzsche (1844-1900), que comemoraria seu aniversário hoje, foi, antes de tudo, um revolucionário, um libertador, um poeta-filósofo capaz de venerar a vida terrena, entendendo a arte como a suprema atividade metafísica de nossa existência. Ao contrário de tantos intelectuais pretensiosos, Nietzsche nunca buscou sistematizar a realidade em torno de uma concepção fácil: seus escritos comunicam verdades profundas apenas aos irreverentes espíritos que enxergam além das dualidades, pensam além das convenções, sentem além da razão.
     Naturalmente, é na bela civilização grega que o filólogo classicista encontra uma fonte incomparável de nobreza artística, sensibilidade humana e inspiração para viver. Seu primeiro livro, The Birth of Tragedy (O Nascimento da Tragédia), propõe-se a perscrutar as origens do impressionante drama ático, que se desenvolveu a partir de um conjunto de manifestações religiosas para, no fim, declinar sob a influência da racionalidade socrático-platônica. Quanto à gênese profunda da fé entre os helênicos, Nietzsche nos oferece uma das explicações que mais me parecem elegantes: “Os deuses”, diz-nos ele, “justificam a vida dos homens porque eles próprios a vivem” – de fato, no refinado entendimento grego, as divindades, como nós, também sorriem, também choram, também se deleitam, também sofrem.
     Inspirado pela visão de mundo pessimista de Schopenhauer e pela agudíssima música de Wagner, o pensador defendeu a regeneração da cultura moderna através do redescobrimento da poesia antiga. Nietzsche compreendia, afinal, que os gregos são os que mais podem ensinar-nos a enfrentar a realidade desapaixonada, burocrática e cinzenta de nossos tempos – Nietzsche compreendia os gregos por aquilo que eles verdadeiramente foram: um povo profundamente sensível, valente e feliz.
     A seguir, traduzo (do inglês) alguns trechos que me são particularmente significativos.


   Music and tragedy? Greeks and the music of tragedy? Greeks and the pessimistic art form? The most accomplished, most beautiful, most universally envied race of mankind, those most capable of seducing us into life — they were the ones who needed tragedy? Or even more — art? What for? Is it perhaps possible to suffer from over abundance? A tempting and challenging, sharp-eyed courage that craves the terrible as one craves the enemy, the worthy enemy, against whom it can test its strength? Wishing to learn from it the meaning of ‘fear’? What is the meaning, for those Greeks of the best, strongest, most courageous age, of the tragic myth? And of the tremendous phenomenon of the Dionysiac? And of the tragedy that was born from it?
   The Greeks knew and felt the fears and horrors of existence: in order to be able to live at all they had to interpose the radiant dream-birth of the Olympians between themselves and those horrors. How else could life have been borne by a race so sensitive, so impetuous in its desires, so uniquely capable of suffering, if it had not been revealed to them, haloed in a higher glory, in their gods? The same impulse that calls art into existence, the complement and apotheosis of existence, also created the Olympian world with which the Hellenic ‘will’ held up a transfiguring mirror to itself. Thus the gods provide a justification for the life of man by living it themselves — the only satisfactory form of theodicy!
   Anyone who approaches these Olympians with a different religion in his heart, seeking elevated morals, even sanctity, ethereal spirituality, charity and mercy, will quickly be forced to turn his back upon them, discouraged and disappointed. Nothing here suggests asceticism, spirituality or duty — everything speaks of a rich and triumphant existence, in which everything is deified, whether it be good or evil. And thus the onlooker may be disquieted by this fantastic exuberance of life, wondering what magic potion these boisterous men must have drunk to enjoy life so much that, whichever way they look, Helen, ‘floating in sweet sensuality’, the ideal image of their own existence, smiles back at them.
   Singing and dancing, man expresses himself as a member of a higher community: he has forgotten how to walk and talk, and is about to fly dancing into the heavens. His gestures express enchantment. Just as the animals now speak, and the earth yields up milk and honey, he now gives voice to supernatural sounds: he feels like a god, he himself now walks about enraptured and elated as he saw the gods walk in dreams. Man is no longer an artist, he has become a work of art: the artistic power of the whole of nature reveals itself to the supreme gratification of the primal Oneness amidst the paroxysms of intoxication.

(Traduzido do alemão por Walter Kaufmann)

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   Música e tragédia? Gregos e a música da tragédia? Gregos e a arte pessimista? Os humanos da raça mais realizada, bela, invejada e capaz de nos inspirar a viver – eram eles os que sentiam a necessidade da tragédia? Ou, ainda mais, da arte? Por quê? Será possível sofrer de excesso? De uma coragem tentadora e intrépida que desafia o terrível tal como o guerreiro busca o inimigo, o inimigo digno, contra quem pode pôr sua força à prova? Desejando, assim, aprender o significado do medo? E qual é o significado, para os gregos pertencentes à melhor, à mais forte, à mais corajosa era, do mito trágico? E do tremendo fenômeno dionisíaco? E da tragédia que nasceu desse fenômeno?
   Os gregos conheciam e sentiam os medos, os horrores da existência: para viverem, eles tinham de interpor a radiância dos deuses olímpicos entre sua própria realidade e esses horrores. De que outra maneira poderia a vida ser tolerada por homens tão sensíveis, tão intensos em seus desejos, tão singularmente capazes de sofrer, se ela não lhes tivesse sido revelada, aureolada em uma glória maior, através de seus deuses? O mesmo impulso que chama a arte à existência, o complemento e a apoteose da existência, também criou o mundo olímpico com o qual o vigor helênico ergueu um espelho transfigurador para si mesmo. Os deuses, então, justificam a vida dos homens porque eles próprios a vivem – a única forma satisfatória de teodiceia!
   Qualquer um que se aproxime destes olímpicos com uma religião diferente no coração, buscando uma moral elevada, até mesmo santidade, espiritualidade etérea, caridade e misericórdia será rapidamente forçado a dar as costas a eles, desanimado e decepcionado. Nada aqui sugere ascetismo, espiritualidade ou dever – tudo fala de uma existência rica e triunfante, na qual todas as coisas são deificadas, boas ou más. E, assim, é possível que fiquemos inquietos com essa fantástica exuberância da vida, perguntando-nos que mágica poção esses homens turbulentos beberam para aproveitar tanto a vida, de modo que, para onde quer que olhem, Helena – “flutuando em doce sensualidade”, a imagem ideal de sua própria existência – sorri-lhes de volta.
   Cantando e dançando, o homem se expressa enquanto membro de uma comunidade superior: ele se esqueceu de como andar e falar e está prestes a voar dançando para os céus. Seus gestos expressam encantamento. Da mesma maneira que os animais agora falam e a terra produz leite e mel, o homem passa a dar voz a sons sobrenaturais: ele se sente um deus, caminhando extasiado e exultante tal como via os deuses caminharem em seus sonhos. O homem não é mais um artista – ele se tornou uma obra de arte: o poder artístico de toda a natureza se revela para a suprema gratificação da Unidade Primordial em meio aos paroxismos intoxicados.

Entardecer na Acrópole (Atenas, 10/24)

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