quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Heráclito de Éfeso: dialética e poesia


Etienne Parrocel, Portrait du Philosophe Héraclite

     Solitário membro de uma estirpe gregária, Heráclito de Éfeso (aprox. 500 a.C.) parece não ter contado com discípulos ou associados pessoais. Em uma época que consideramos ainda fundamentalmente oral, sua influência exerceu-se quase apenas por meio do poder da palavra escrita, produzindo, dentro de uma ou duas gerações, alguns convictos seguidores, os “heracliteanos”.
     Como toda prosa antes de Heródoto e toda filosofia antes de Platão, as linhas originais de Heráclito se perderam. Para acessá-las, nós dependemos inteiramente de citações, paráfrases e relatos posteriores que tenham sobrevivido ao declínio da civilização antiga. A unidade intelectual de sua composição, contudo, permanece evidente nos fragmentos que nos restam: o tema central do pensamento de Heráclito consiste em afirmar diretamente a própria confluência de opostos. Não deixamos de notar pontos de contato com o zoroastrismo, com os Upanishads, com o Tao – e, em tempos mais modernos, com as ideias de Schopenhauer, de Emerson e de Nietzsche.
     Heráclito não é apenas um filósofo, mas, também, um poeta – um poeta que escolheu falar-nos em tons crípticos, metafóricos e proféticos. Hoje, celebramos suas linhas belas e inovadoras: o pensador de Éfeso foi o primeiro a descobrir, aceitar e amar a permanência na mudança, a ordem no paradoxo, a harmonia no caos. “Deus”, Heráclito nos ensina, é “dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome” – ou seja: coisas que nos podem parecer contrárias, inimigas e inconciliáveis são, na verdade, diferentes manifestações da mesma essência universal, eterna e misteriosa.
     A seguir, traduzo, do inglês (Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus) e do meu deprimente grego, alguns de seus fragmentos que me são especialmente significativos.


     κόσµον, τὸν αὐτὸν ἁπάντων, οὔτε τις θεῶν, οὔτε ἀνθρώπων ἐποίησεν, ἀλλ' ἦν ἀεὶ καὶ ἔστιν καὶ ἔσται πῦρ ἀείζωον, ἁπτόµενον µέτρα καὶ ἀποσϐεννύµενον µέτρα. 
     The ordering, the same for all, no god nor man has made, but it ever was and is and will be: fire everliving, kindled in measures and in measures going out.
     A essência universal, que rege igualmente a tudo quanto existe, não nasceu de qualquer deus ou de qualquer homem, mas sempre foi, é e será: fogo eterno, acendendo-se e apagando-se em constante ritmo.

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     οὐδὲ θνητῆς οὐσίας δὶς ἅφασθαι κατὰ ἕξιν· ἀλλ΄ὀξύτητι καὶ τάχει µεταϐολῆς σκίδνησι καὶ πάλιν συνάγει καὶ πρόσεισι καὶ ἄπεισι. 
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     One cannot step twice into the same river, nor can one grasp any mortal substance in a stable condition, but it scatters and again gathers; it forms and dissolves, and approaches and departs.
     Ninguém pode pisar duas vezes o mesmo rio; ninguém pode apreender a qualquer substância mortal em condições estáveis: todas as coisas se fragmentam e se recompõem, formam-se e se dissolvem, vêm e vão.

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     ὁ ἥλιος νέος ἐφ' ἡµέρῃ ἐστίν
     The sun is new every day
     O sol é novo a cada dia

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     τὸ φρονεῖν ἀρετὴ µεγίστη, καὶ σοφίη ἀληθέα λέγειν καὶ ποιεῖν κατὰ φύσιν ἐπαΐοντας. 
     Thinking well is the greatest excellence and wisdom: to act and speak what is true, perceiving things according to their nature.
     Pensar corretamente é a mais sábia das excelências: dizer aquilo que é verdade e agir de acordo com a verdade, compreendendo as coisas conforme a sua natureza.

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     ἦθος ἀνθρώπῳ δαίµων
     Man’s character is his fate.
     O nosso caráter é o nosso destino.

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     ἀνθρώποις γίνεσθαι ὁκόσα θέλουσιν οὐκ ἄµεινον. νοῦσος ὑγιείην ἐποίησεν ἡδὺ, κακὸν ἀγαθόν, λιµὸς κόρον, κάµατος ἀνάπαυσιν. 
     It is not better for human beings to get all they want. It is disease that makes health sweet and good, hunger satiety, weariness rest.
     Não convém que tenhamos tudo aquilo que queremos. É a doença que torna a doce saúde valiosa; fome, saciedade; fadiga, descanso.

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     χρυσὸν γὰρ οἱ διζήµενοι γῆν πολλὴν ὀρύσσουσι καὶ εὑρίσκουσιν ὀλίγον. 
     Seekers of gold dig up much earth and find little.
     Aqueles que buscam ouro hão de cavar muita terra e encontrar pouco.

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     κακοὶ µάρτυρες ἀνθρώποισιν ὀφθαλµοὶ καὶ ὦτα βαρϐάρους ψυχὰς ἐχόντων. 
     Eyes and ears are poor witnesses for men if they have barbarian souls.
     Olhos e ouvidos são precários instrumentos para homens de almas bárbaras.

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     τίς γὰρ αὐτῶν νόος ἢ φρήν; δήµων ἀοιδοῖσι πείθονται καὶ διδασκάλῳ χρείωνται ὁµίλῳ οὐκ εἰδότες ὅτι οἱ πολλοὶ κακοί, ὀλίγοι δὲ ἀγαθοί . 
     What wit or understanding do they have? They believe the poets of the people and take the mob as their teacher, not knowing that the many are worthless, good men are few.
     Que inteligência ou sabedoria eles têm? Eles deixam-se instruir pelos cantores do populacho e tomam as massas por mestres, jamais entendendo que os muitos são descartáveis: homens valiosos são poucos.

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     τῷ µὲν θεῷ καλά πάντα καὶ ἀγαθὰ καὶ δὶκαια, ἄνθρωποι δὲ ἅ µὲν ἄδικα ὑπειλήφασιν ἃ δὲ δίκαια. 
     For god all things are fair and good and just, but men have taken some things as unjust, others as just.
     Para deus, todas as coisas são belas, boas e justas, mas os homens tomam algumas por justas e outras, por injustas.

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     ὁ θεὸς ἡµέρη εὐφρόνη, χειµὼν θέρος, πόλεµος εἰρήνη, κόρος λιµός, ἀλλοιοῦται δὲ ὅκωσπερ, ὁπόταν συµµιγῇ θυώµασιν ὀνοµάζεται καθ΄ ἡδονὴν ἑκάστου. 
     The god: day and night, winter and summer, war and peace, satiety and hunger. It alters, as when mingled with perfumes, it gets named according to the pleasure of each one.
     Deus: dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome. Ele se altera – como alteram-se distintos odores quando os mesclamos – e recebe diferentes nomes de acordo com cada um.

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     ὁδὸς ἄνω κάτω µία καὶ ὡυτή. 
     The way up and down is one and the same.
     O caminho para cima e o caminho para baixo são o mesmo.

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     συνάψιες ὅλα καὶ οὐχ ὅλα, συµφερόµενον διαφερόµενον, συνᾷδον διᾷδον, καὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα. 
     Graspings: wholes and not wholes, convergent divergent, consonant dissonant, from all things one and from one thing all.
     Fagulhas de compreensão: totalidades e fragmentos, divergente convergente, dissonante consonante – de tudo, um; de um, tudo.

No Vaticano, a famosa Escola de Atenas, de Rafael, retrata Heráclito (de túnica lilás) sentado ao pé da escada, meditando alheio aos demais. (Roma, 7/24)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Friedrich Nietzsche: O Nascimento da Tragédia



     Friedrich Nietzsche (1844-1900), que comemoraria seu aniversário hoje, foi, antes de tudo, um revolucionário, um libertador, um poeta-filósofo capaz de venerar a vida terrena, entendendo a arte como a suprema atividade metafísica de nossa existência. Ao contrário de tantos intelectuais pretensiosos, Nietzsche nunca buscou sistematizar a realidade em torno de uma concepção fácil: seus escritos comunicam verdades profundas apenas aos irreverentes espíritos que enxergam além das dualidades, pensam além das convenções, sentem além da razão.
     Naturalmente, é na bela civilização grega que o filólogo classicista encontra uma fonte incomparável de nobreza artística, sensibilidade humana e inspiração para viver. Seu primeiro livro, The Birth of Tragedy (O Nascimento da Tragédia), propõe-se a perscrutar as origens do impressionante drama ático, que se desenvolveu a partir de um conjunto de manifestações religiosas para, no fim, declinar sob a influência da racionalidade socrático-platônica. Quanto à gênese profunda da fé entre os helênicos, Nietzsche nos oferece uma das explicações que mais me parecem elegantes: “Os deuses”, diz-nos ele, “justificam a vida dos homens porque eles próprios a vivem” – de fato, no refinado entendimento grego, as divindades, como nós, também sorriem, também choram, também se deleitam, também sofrem.
     Inspirado pela visão de mundo pessimista de Schopenhauer e pela agudíssima música de Wagner, o pensador defendeu a regeneração da cultura moderna através do redescobrimento da poesia antiga. Nietzsche compreendia, afinal, que os gregos são os que mais podem ensinar-nos a enfrentar a realidade desapaixonada, burocrática e cinzenta de nossos tempos – Nietzsche compreendia os gregos por aquilo que eles verdadeiramente foram: um povo profundamente sensível, valente e feliz.
     A seguir, traduzo (do inglês) alguns trechos que me são particularmente significativos.


   Music and tragedy? Greeks and the music of tragedy? Greeks and the pessimistic art form? The most accomplished, most beautiful, most universally envied race of mankind, those most capable of seducing us into life — they were the ones who needed tragedy? Or even more — art? What for? Is it perhaps possible to suffer from over abundance? A tempting and challenging, sharp-eyed courage that craves the terrible as one craves the enemy, the worthy enemy, against whom it can test its strength? Wishing to learn from it the meaning of ‘fear’? What is the meaning, for those Greeks of the best, strongest, most courageous age, of the tragic myth? And of the tremendous phenomenon of the Dionysiac? And of the tragedy that was born from it?
   The Greeks knew and felt the fears and horrors of existence: in order to be able to live at all they had to interpose the radiant dream-birth of the Olympians between themselves and those horrors. How else could life have been borne by a race so sensitive, so impetuous in its desires, so uniquely capable of suffering, if it had not been revealed to them, haloed in a higher glory, in their gods? The same impulse that calls art into existence, the complement and apotheosis of existence, also created the Olympian world with which the Hellenic ‘will’ held up a transfiguring mirror to itself. Thus the gods provide a justification for the life of man by living it themselves — the only satisfactory form of theodicy!
   Anyone who approaches these Olympians with a different religion in his heart, seeking elevated morals, even sanctity, ethereal spirituality, charity and mercy, will quickly be forced to turn his back upon them, discouraged and disappointed. Nothing here suggests asceticism, spirituality or duty — everything speaks of a rich and triumphant existence, in which everything is deified, whether it be good or evil. And thus the onlooker may be disquieted by this fantastic exuberance of life, wondering what magic potion these boisterous men must have drunk to enjoy life so much that, whichever way they look, Helen, ‘floating in sweet sensuality’, the ideal image of their own existence, smiles back at them.
   Singing and dancing, man expresses himself as a member of a higher community: he has forgotten how to walk and talk, and is about to fly dancing into the heavens. His gestures express enchantment. Just as the animals now speak, and the earth yields up milk and honey, he now gives voice to supernatural sounds: he feels like a god, he himself now walks about enraptured and elated as he saw the gods walk in dreams. Man is no longer an artist, he has become a work of art: the artistic power of the whole of nature reveals itself to the supreme gratification of the primal Oneness amidst the paroxysms of intoxication.

(Traduzido do alemão por Walter Kaufmann)

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   Música e tragédia? Gregos e a música da tragédia? Gregos e a arte pessimista? Os humanos da raça mais realizada, bela, invejada e capaz de nos inspirar a viver – eram eles os que sentiam a necessidade da tragédia? Ou, ainda mais, da arte? Por quê? Será possível sofrer de excesso? De uma coragem tentadora e intrépida que desafia o terrível tal como o guerreiro busca o inimigo, o inimigo digno, contra quem pode pôr sua força à prova? Desejando, assim, aprender o significado do medo? E qual é o significado, para os gregos pertencentes à melhor, à mais forte, à mais corajosa era, do mito trágico? E do tremendo fenômeno dionisíaco? E da tragédia que nasceu desse fenômeno?
   Os gregos conheciam e sentiam os medos, os horrores da existência: para viverem, eles tinham de interpor a radiância dos deuses olímpicos entre sua própria realidade e esses horrores. De que outra maneira poderia a vida ser tolerada por homens tão sensíveis, tão intensos em seus desejos, tão singularmente capazes de sofrer, se ela não lhes tivesse sido revelada, aureolada em uma glória maior, através de seus deuses? O mesmo impulso que chama a arte à existência, o complemento e a apoteose da existência, também criou o mundo olímpico com o qual o vigor helênico ergueu um espelho transfigurador para si mesmo. Os deuses, então, justificam a vida dos homens porque eles próprios a vivem – a única forma satisfatória de teodiceia!
   Qualquer um que se aproxime destes olímpicos com uma religião diferente no coração, buscando uma moral elevada, até mesmo santidade, espiritualidade etérea, caridade e misericórdia será rapidamente forçado a dar as costas a eles, desanimado e decepcionado. Nada aqui sugere ascetismo, espiritualidade ou dever – tudo fala de uma existência rica e triunfante, na qual todas as coisas são deificadas, boas ou más. E, assim, é possível que fiquemos inquietos com essa fantástica exuberância da vida, perguntando-nos que mágica poção esses homens turbulentos beberam para aproveitar tanto a vida, de modo que, para onde quer que olhem, Helena – “flutuando em doce sensualidade”, a imagem ideal de sua própria existência – sorri-lhes de volta.
   Cantando e dançando, o homem se expressa enquanto membro de uma comunidade superior: ele se esqueceu de como andar e falar e está prestes a voar dançando para os céus. Seus gestos expressam encantamento. Da mesma maneira que os animais agora falam e a terra produz leite e mel, o homem passa a dar voz a sons sobrenaturais: ele se sente um deus, caminhando extasiado e exultante tal como via os deuses caminharem em seus sonhos. O homem não é mais um artista – ele se tornou uma obra de arte: o poder artístico de toda a natureza se revela para a suprema gratificação da Unidade Primordial em meio aos paroxismos intoxicados.

Entardecer na Acrópole (Atenas, 10/24)

Drummond: Passagem do Ano

     Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) era um homem de temperamento reservado, discreto e meditativo – mas sabia compor versos que, enc...