sábado, 22 de junho de 2024

James Joyce: Eveline



Caminhando pelas ruas multifacetadas de Dublin, não é difícil perceber de onde James Joyce (1882-1941) colheu as inspirações para sua obra. Assim como os escritos do irlandês mais célebre do mundo, Dublin é uma cidade viva, falante e plural.

No conto Eveline, presente em seu Dubliners, Joyce dá voz ao multiverso interior de uma mulher que, reduzida a uma insípida rotina doméstica, contempla a possibilidade de ir-se embora a outras terras, de levar uma existência diferente. Se, todavia, a perspectiva da liberdade lhe instiga ânimo, também Eveline se sente, de algum modo, apegada à sua família, aos seus ares, ao seu rincão – ainda que tudo isso signifique uma vida árdua de labuta e monotonia.

O dilema é lancinante. No fim das contas, devemos ler o conto inteiro para constatarmos que as ações de Eveline não podem ser compreendidas apenas por meio dos pretensiosos ditames da razão – temos de tentar entender principalmente suas emoções, afetos e mágoas. E é aí que reside uma das grandes belezas da condição humana, bem explorada, neste caso, por Joyce.



But in her new home, in a distant unknown country, it would not be like that. Then she would be married—she, Eveline. People would treat her with respect then. She would not be treated as her mother had been. Even now, though she was over nineteen, she sometimes felt herself in danger of her father’s violence. She knew it was that that had given her the palpitations. When they were growing up he had never gone for her, like he used to go for Harry and Ernest, because she was a girl, but latterly he had begun to threaten her and say what he would do to her only for her dead mother’s sake. And now she had nobody to protect her. Ernest was dead and Harry, who was in the church decorating business, was nearly always down somewhere in the country. Besides, the invariable squabble for money on Saturday nights had begun to weary her unspeakably. She always gave her entire wages—seven shillings—and Harry always sent up what he could but the trouble was to get any money from her father. He said she used to squander the money, that she had no head, that he wasn’t going to give her his hard-earned money to throw about the streets, and much more, for he was usually fairly bad on Saturday night. In the end he would give her the money and ask her had she any intention of buying Sunday’s dinner. Then she had to rush out as quickly as she could and do her marketing, holding her black leather purse tightly in her hand as she elbowed her way through the crowds and returning home late under her load of provisions. She had hard work to keep the house together and to see that the two young children who had been left to her charge went to school regularly and got their meals regularly. It was hard work—a hard life—but now that she was about to leave it she did not find it a wholly undesirable life. 



Mas, em sua nova casa, em um país distante e desconhecido, tudo seria diferente. Ela então estaria casada — ela, Eveline. As pessoas então a tratariam com respeito; não seria tratada como sua mãe o fora. Mesmo agora, que tinha mais de dezenove anos, sentia-se às vezes ameaçada pela violência do pai. Sabia que era isso a causa de suas palpitações. Quando crianças, ele nunca batia nela, como batia em Harry e em Ernest, porque ela era menina, mas ultimamente passava a ameaçá-la e a dizer o que lhe faria não fosse a lembrança da mãe falecida. E agora não havia mais ninguém para protegê-la. Ernest estava morto e Harry, que trabalhava com decoração de igrejas, ficava quase sempre ausente, viajando pelas áreas rurais do país. Além do mais, o inevitável bate-boca sobre dinheiro todo sábado à noite começava a deixá-la indescritivelmente exausta. Ela sempre entregava o salário inteiro — sete shillings — e Harry sempre enviava o que podia, mas o problema era conseguir arrancar dinheiro do pai. Ele dizia que ela desperdiçava dinheiro, que não tinha juízo, que não lhe daria o seu dinheiro suado para ser jogado fora, e dizia muito mais, pois geralmente ficava em péssimo estado nas noites de sábado. No fim das contas, terminava dando-lhe o dinheiro e perguntava se ia comprar o jantar de domingo. Então ela saía correndo ao mercado, segurando firme a bolsa preta de couro enquanto abria caminho pela multidão com os cotovelos, e voltava para casa tarde, carregada de pacotes. Tinha de trabalhar duro para manter o lar em ordem e assegurar que as duas crianças sob os seus cuidados fossem à escola devidamente alimentadas. Era um trabalho duro — uma vida dura —, mas, prestes a deixar tudo para trás, agora aquela vida não lhe parecia de todo indesejável.



Registros de um lindo Bloomsday em Dublin (16/6/24)



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...