sábado, 29 de junho de 2024

Miguel de Unamuno: Minha Religião

 


Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Religión (Minha Religião), as bases de suas convicções metafísicas. Unamuno recusa-se a seguir qualquer fé que se reduza ao dogmatismo obscurantista e empoeirado. Ao contrário: ele não se permite crer senão na dúvida – sua religião, diz-nos, é “lutar incessantemente e incansavelmente contra o mistério”, mesmo certo de que a derrota o aguarda.

Unamuno é uma das figuras mais importantes do pensamento humanista no século XX. Tive o prazer de residir, durante um semestre, em Salamanca, onde o filósofo viveu, escreveu suas obras e morreu. Salamanca carrega o legado de Unamuno até hoje, homenageando-o com estátuas, livrarias, placas e nomes de lojas de café. Sentirei saudades.



Tanto los individuos como los pueblos de espíritu perezoso —y cabe pereza espiritual con muy fecundas actividades de orden económico y de otros órdenes análogos— propenden al dogmatismo, sépanlo o no lo sepan, quiéranlo o no, proponiéndose o sin proponérselo. La pereza espiritual huye de la posición crítica o escéptica.

Escéptica digo, pero tomando la voz escepticismo en su sentido etimológico y filosófico, porque escéptico no quiere decir el que duda, sino el que investiga o rebusca, por oposición al que afirma y cree haber hallado.

(...)

Y bien, se me dirá, “¿Cuál es tu religión?” Y yo responderé: mi religión es buscar la verdad en la vida y la vida en la verdad, aun a sabiendas de que no he de encontrarlas mientras viva; mi religión es luchar incesante e incansablemente con el misterio; mi religión es luchar con Dios desde el romper del alba hasta el caer de la noche, como dicen que con Él luchó Jacob. (...)

“Sed perfectos como vuestro Padre que está en los cielos es perfecto”, nos dijo el Cristo, y semejante ideal de perfección es, sin duda, inasequible. Pero nos puso lo inasequible como meta y término de nuestros esfuerzos. Y ello ocurrió, dicen los teólogos, con la gracia. Y yo quiero pelear mi pelea sin cuidarme de la victoria. ¿No hay ejércitos y aun pueblos que van a una derrota segura? ¿No elogiamos a los que se dejaron matar peleando antes que rendirse? Pues ésta es mi religión.



Tanto os indivíduos como os povos de espírito preguiçoso – e a preguiça espiritual pode coexistir com atividades altamente frutíferas de ordem econômica e semelhantes – tendem ao dogmatismo, saibam disso ou não, queiram isso ou não, proponham-se a isso ou não. A preguiça espiritual foge de uma posição crítica ou cética.

Digo “cética” e tomo o ceticismo em seu sentido etimológico e filosófico, porque “cético” não significa aquele que duvida, mas aquele que investiga ou refina, em oposição àquele que afirma e acredita ter encontrado.

(...)

E hão de perguntar-me: “Qual é tua religião?” E eu responderei: minha religião é buscar a verdade na vida e a vida na verdade, mesmo que saiba que não as encontrarei enquanto viver; minha religião é lutar incessantemente e incansavelmente contra o mistério; minha religião é lutar contra Deus desde o amanhecer até o cair da noite, como dizem que Jacó lutou contra Ele. (...)

“Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito”, disse-nos Cristo, e esse ideal de perfeição é, sem dúvida, inatingível. Mas ele estabeleceu o inatingível como a meta e o fim de nossos esforços. E isso aconteceu, dizem os teólogos, com graça. E eu quero travar minha luta sem me preocupar com a vitória. Não há exércitos e até mesmo povos que marcham rumo à derrota certa? Não elogiamos aqueles que preferem morrer lutando a render-se? Pois essa é a minha religião.

sábado, 22 de junho de 2024

James Joyce: Eveline



Caminhando pelas ruas multifacetadas de Dublin, não é difícil perceber de onde James Joyce (1882-1941) colheu as inspirações para sua obra. Assim como os escritos do irlandês mais célebre do mundo, Dublin é uma cidade viva, falante e plural.

No conto Eveline, presente em seu Dubliners, Joyce dá voz ao multiverso interior de uma mulher que, reduzida a uma insípida rotina doméstica, contempla a possibilidade de ir-se embora a outras terras, de levar uma existência diferente. Se, todavia, a perspectiva da liberdade lhe instiga ânimo, também Eveline se sente, de algum modo, apegada à sua família, aos seus ares, ao seu rincão – ainda que tudo isso signifique uma vida árdua de labuta e monotonia.

O dilema é lancinante. No fim das contas, devemos ler o conto inteiro para constatarmos que as ações de Eveline não podem ser compreendidas apenas por meio dos pretensiosos ditames da razão – temos de tentar entender principalmente suas emoções, afetos e mágoas. E é aí que reside uma das grandes belezas da condição humana, bem explorada, neste caso, por Joyce.



But in her new home, in a distant unknown country, it would not be like that. Then she would be married—she, Eveline. People would treat her with respect then. She would not be treated as her mother had been. Even now, though she was over nineteen, she sometimes felt herself in danger of her father’s violence. She knew it was that that had given her the palpitations. When they were growing up he had never gone for her, like he used to go for Harry and Ernest, because she was a girl, but latterly he had begun to threaten her and say what he would do to her only for her dead mother’s sake. And now she had nobody to protect her. Ernest was dead and Harry, who was in the church decorating business, was nearly always down somewhere in the country. Besides, the invariable squabble for money on Saturday nights had begun to weary her unspeakably. She always gave her entire wages—seven shillings—and Harry always sent up what he could but the trouble was to get any money from her father. He said she used to squander the money, that she had no head, that he wasn’t going to give her his hard-earned money to throw about the streets, and much more, for he was usually fairly bad on Saturday night. In the end he would give her the money and ask her had she any intention of buying Sunday’s dinner. Then she had to rush out as quickly as she could and do her marketing, holding her black leather purse tightly in her hand as she elbowed her way through the crowds and returning home late under her load of provisions. She had hard work to keep the house together and to see that the two young children who had been left to her charge went to school regularly and got their meals regularly. It was hard work—a hard life—but now that she was about to leave it she did not find it a wholly undesirable life. 



Mas, em sua nova casa, em um país distante e desconhecido, tudo seria diferente. Ela então estaria casada — ela, Eveline. As pessoas então a tratariam com respeito; não seria tratada como sua mãe o fora. Mesmo agora, que tinha mais de dezenove anos, sentia-se às vezes ameaçada pela violência do pai. Sabia que era isso a causa de suas palpitações. Quando crianças, ele nunca batia nela, como batia em Harry e em Ernest, porque ela era menina, mas ultimamente passava a ameaçá-la e a dizer o que lhe faria não fosse a lembrança da mãe falecida. E agora não havia mais ninguém para protegê-la. Ernest estava morto e Harry, que trabalhava com decoração de igrejas, ficava quase sempre ausente, viajando pelas áreas rurais do país. Além do mais, o inevitável bate-boca sobre dinheiro todo sábado à noite começava a deixá-la indescritivelmente exausta. Ela sempre entregava o salário inteiro — sete shillings — e Harry sempre enviava o que podia, mas o problema era conseguir arrancar dinheiro do pai. Ele dizia que ela desperdiçava dinheiro, que não tinha juízo, que não lhe daria o seu dinheiro suado para ser jogado fora, e dizia muito mais, pois geralmente ficava em péssimo estado nas noites de sábado. No fim das contas, terminava dando-lhe o dinheiro e perguntava se ia comprar o jantar de domingo. Então ela saía correndo ao mercado, segurando firme a bolsa preta de couro enquanto abria caminho pela multidão com os cotovelos, e voltava para casa tarde, carregada de pacotes. Tinha de trabalhar duro para manter o lar em ordem e assegurar que as duas crianças sob os seus cuidados fossem à escola devidamente alimentadas. Era um trabalho duro — uma vida dura —, mas, prestes a deixar tudo para trás, agora aquela vida não lhe parecia de todo indesejável.



Registros de um lindo Bloomsday em Dublin (16/6/24)



Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...