quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Knut Hamsun: vida eterna

 


   Os Frutos da Terra, romance que valeu a Knut Hamsun (1859-1952) o Nobel de 1920, é uma espécie de epopeia sobre a vida rural e a persistência do indivíduo perante os problemas que a natureza e a sociedade lhe impõem.
   Isak, homem intrépido, estabelece-se no inóspito do norte da Noruega e ali ergue, a partir do esforço de suas mãos, uma casa – Sellanraa –, onde passa a viver. Não tarda a aparecer-lhe Inger, mulher que se torna sua companheira e o ajuda a fundar uma família e um modelo de existência centrado no cultivo do campo na dedicação às coisas simples.
   Grande prosador da literatura ocidental, Hamsun é conhecido por ter travado, através de sua obra, um combate contra os avanços predatórios da modernidade, em favor de uma relação mais profunda do ser humano com a natureza. Em Os Frutos da Terra, ele faz de Isak o arquétipo da figura que, persistente, transforma terras ferozes em jardins amenos; tudo em Isak o afasta de qualquer tipo de visão gananciosa, burocrática e desencantada do mundo. E é o resultado de seu empenho, diz-nos a bela prosa de Hamsun, aquilo que faz a vida ser eterna.

   Olha a tua gente de Sellanraa: contempla todos os dias os picos azuis, que não são invenções recentes do homem, mas montanhas antigas, profundamente ancoradas no mais remoto passado; tua gente as tem como companheiras. Os teus ali vivem com o céu e a terra, de que são parte, são uma parcela do todo, amplo e imenso, sólido e arraigado. Os teus não precisam de levar a espada na mão, levam a vida de mãos vazias e cabeça descoberta, no coração de um mundo amigo. Vês! Ali está a natureza, é tua e dos teus! O homem e a natureza não se bombardeiam, dão razão um ao outro, não concorrem um com outro, não se empenham numa corrida para vencer um ao outro, mas caminham ao lado um do outro. No meio de tudo, anda a tua gente de Sellanraa. As montanhas, a floresta, os brejos e os prados, o céu e as estrelas... Ah, não ali pobreza nem rações medidas, ali não há medidas... Ouve-me, Sivert: sê contente! Os teus têm do que viver e por que viver, têm no que acreditar, os teus dão vida, criam e produzem, são indispensáveis na terra. Nem todos o são, mas os teus o são: indispensáveis na terra. Os teus mantêm a vida. De geração em geração, os teus plantam e criam, e, quando morrem, a descendência continua a procriar. É isso o que se chama a vida eterna.
    (Tradução de Guttorm Hansen, p. 287)


sábado, 10 de fevereiro de 2024

Três poemas de Joyce Mansour



   O surrealismo francês produziu nomes de altíssimo valor – Paul Éluard, Louis Aragon, Benjamin Péret e outros. Ainda pouco conhecido entre nós, porém, é o nome de Joyce Mansour (1928-1986), de origem egípcia, cuja obra poética não ostenta brilho menor do que as de seus pares. Os versos de Mansour, sempre livres, caracterizam-se pela agudeza de imagens que, em breves palavras, dão corpo ao ímpeto revolucionário inerente à linguagem poética – um de seus mais formidáveis atributos. 
    A seguir, tento a tradução de três de seus pequenos poemas.


Combien d’amours ont fait crier ton lit?
Combien d’années ont ridé tes yeux?
Qui a vidé tes seins épuisés?
Je t’ai regardé avec mes yeux de plomb
Et mes illusions ont éclaté
Laissant derrière elles
Ta vieillesse
Qui ne peux répondre à mes questions.

-
Quantos amores fizeram tua cama chorar?
Quantos anos te enrugaram os olhos?
Quem esvaziou teus seios enxutos?
Vi-te com meus olhos de chumbo
E minhas ilusões se romperam
Deixando atrás
Tua velhice
Que não pode responder às minhas perguntas.



Invitez-moi à passer la nuit dans votre bouche
Racontez-moi la jeunesse des rivières
Pressez ma langue contre votre œil de verre
Donnez-moi votre jambe comme nourrice
Et puis dormons, frère de mon frère,
Car nos baisers meurent plus vite que la nuit.

-
Convida-me a passar a noite em tua boca
Fala-me sobre a juventude dos rios
Aperta minha língua contra teu olho de vidro
Dá-me tua perna como ama de leite
E depois durmamos, irmão de meu irmão,
Pois nossos beijos morrem mais depressa do que a noite.



Je suis la nuit
Cette nuit d’espace glacée par la froide imbécilité de la lune.
Je suis l’argent
L’argent qui fait l’argent sans savoir pourquoi.
Je suis l’homme
L’homme qui presse la gâchette et tire l’émotion
Pour mieux vivre.

-
Eu sou a noite
Esta noite de espaço gélido pela fria tolice da lua.
Eu sou o dinheiro
O dinheiro que faz o dinheiro sem saber por quê.
Eu sou o homem
O homem que puxa o gatilho e alveja a emoção
Para viver melhor.

(De Emerald Wounds – Selected Poems)

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...