quarta-feira, 13 de julho de 2022

Nós, leitores

 


   Quer parecer ao ensaísta argentino Alberto Manguel (1948-) que nós, leitores, não lemos apenas pelo prazer da leitura em si, nem pela erudição que pode tanto nos assimilar positivamente ao espírito ou alimentar nosso pedantismo. Lemos, diz-nos ele, ignorantemente: com desprezo, admiração, em movimentos longos, lentos, cheios de preconceitos ou de excessiva generosidade, movidos por uma paixão talvez inexplicável, que confere às grandes obras um poder insondável sobre nossas vidas.
    É, provavelmente, quanto basta para tentar justificar nossa afeição pela arte das palavras.

  “Sabemos que estamos lendo, mesmo quando suspendemos a descrença; sabemos porque lemos mesmo quando não sabemos como, mantendo em nossa mente, a um só tempo, o texto ilusivo e o ato de ler. Lemos para descobrir o final, pelo prazer da história, não pelo prazer da leitura em si. Lemos buscando, como rastreadores, esquecidos de onde estamos. Lemos distraidamente, pulando páginas. Lemos com desprezo, admiração, negligência, raiva, paixão, inveja, anelo. Lemos em lufadas de súbito prazer, sem saber o que provocou esse prazer. ‘O que é, no fim das contas, essa emoção?’ – pergunta Rebecca West depois de ler o Rei Lear.
  ‘Que poder têm as grandes obras de arte sobre minha vida para fazer com que eu me sinta tão contente?’ Não sabemos: lemos ignorantemente. Lemos em movimentos longos, lentos, como que pairando no espaço, sem peso. Lemos cheios de preconceitos, com malignidade. Lemos generosamente, arranjando desculpas para o texto, preenchendo lacunas, corrigindo erros. E às vezes, quando as estrelas são favoráveis, lemos de um único fôlego, com um arrepio, como se alguém ou algo tivesse ‘caminhado sobre nosso túmulo’, como se uma memória tivesse subitamente sido resgatada de um lugar no fundo de nós mesmos – o reconhecimento de algo que nunca soubemos que estava lá, ou de algo que sentimos vagamente, como um bruxuleio ou uma sombra, cuja forma fantasmagórica ergue-se e instala-se em nós sem que possamos ver o que é, deixando-nos mais velhos e sábios.”


(Manguel, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, págs. 291  292).

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