quarta-feira, 27 de julho de 2022

Robert Frost: Acquainted with the Night


    Em Acquainted with the Night (À Noite Habituado, como traduzo), de 1928, Robert Frost (1874-1963) explora a perspectiva da solidão. A princípio, quer-nos parecer apropriado analisar o poema sob uma dimensão metafórica, associando a “noite” a um estado mental de melancolia e pensamentos sombrios. Mas o eu lírico não nos revela seus sentimentos: Frost meramente dá voz a uma figura que costumava caminhar sem interações humanas. O falante, em suas andanças, ansiava por um amigo, desejava que alguém o compreendesse, buscava sair do escuro? Ou gostava de estar só, rejeitava qualquer companhia, afastava-se propositalmente da luz? Não sabemos a resposta. Creio que, aqui, é preferível a incerteza capaz de nos causar fascínio, uma das grandes singularidades da linguagem poética.


ACQUAINTED WITH THE NIGHT

I have been one acquainted with the night.
I have walked out in rain – and back in rain.
I have outwalked the furthest city light.

I have looked down the saddest city lane.
I have passed by the watchman on his beat
And dropped my eyes, unwilling to explain.

I have stood still and stopped the sound of feet
When far away an interrupted cry
Came over houses from another street,

But not to call me back or say good-bye;
And further still at an unearthly height,
One luminary clock against the sky

Proclaimed the time was neither wrong nor right.
I have been one acquainted with the night.



À NOITE HABITUADO

Eu já fui alguém à noite habituado.
Sob a chuva saí – e voltei sob a chuva.
E as luzes da cidade eu já deixei de lado.

Já pude vislumbrar a mais triste das ruas.
Já deixei para trás o zelo do vigia
E baixei meu olhar, em afasia crua.

Parei, calei o som que meu andar fazia
Quando, muito distante, algum grito irrompeu,
Vindo por sobre casas de remotas vias,

Mas não para chamar-me ou me dizer adeus;
E ainda mais imóvel, num desterro alto,
Proclamava um relógio a brilhar contra os céus

Que o tempo não estava certo nem errado.
Eu já fui alguém à noite habituado.


(FROST, Robert. Complete poems of Robert Frost.
USA: Holt, Rinehart and Winston, 1964, pág. 324).

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Três poemas de Paul Éluard

 


    Paul Éluard (1895-1952) floresceu durante um momento extraordinário da vida cultural de seu país. Filiou-se ao Partido Comunista Francês em 1927 e conviveu com figuras como André Breton, Louis Aragon e Pablo Picasso. Seu prestígio deve-se principalmente a uma poesia surrealista e atenta às questões sociais de seu tempo. A partir dos anos trinta, seus versos tornaram-se mais diretos e crescia a sua preocupação com o fascismo e com a guerra. Admiro Éluard especialmente por saber criar imagens singulares que nos comunicam os diferentes sentimentos do homem – e que, às vezes, expressam aquilo que parece ser sua filosofia de vida: uma busca de liberdade, calor e amizade.
    A seguir, traduzo-lhe alguns poemas e deixo Liberté, o mais célebre, nas mãos dos nossos Manuel Bandeira (a quem Éluard conheceu pessoalmente) e Carlos Drummond de Andrade.


CINQ HAI-KAIS

Le vent
Hésitant
Roule une cigarette d'air.

La muette parle
C’est l'imperfection de l'art
Ce langage obscur.

L'automobile est vraiment lancée
Quatre têtes de martyrs
Roulent sous les roues.

Ah ! mille flammes, un feu, la lumière,
Une ombre !
Le soleil me suit.

Une plume donne au chapeau
Un air de légèreté
La cheminée fume.



CINCO HAI-KAIS

O vento
Hesitante
Enrola um cigarro de ar.

A muda fala
É a imperfeição da arte
Essa linguagem obscura.

De fato, o carro despertou
Quatro cabeças de mártires
Rolam por baixo das rodas.

Ah! Mil chamas, fogo, luz,
Uma sombra!
O sol me segue.

Uma pena dá ao chapéu
Um ar de leveza
A chaminé fuma.

––

NUDITÉ DE LA VÉRITÉ
Je le sais bien
Le désespoir n’a pas d’ailes,
L’amour non plus,
Pas de visage,
Ne parlent pas,
Je ne bouge pas,
Je ne les regarde pas,
Je ne leur parle pas
Mais je suis bien aussi vivant que mon amour et que mon désespoir.



NUDEZ DA VERDADE
Sei-o bem
O desespero não tem asas,
Nem o amor,
Não têm rosto,
Não falam,
Eu não me mexo,
Não os vejo,
Não lhes falo
Mas sou tão vivo quanto meu amor e meu desespero.

––

LIBERTÉ

Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom

Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom

Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom

Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom

Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom

Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom

Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom

Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom

Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J'écris ton nom

Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J'écris ton nom

Sur la lampe qui s'allume
Sur la lampe qui s'éteint
Sur mes maisons réunies
J'écris ton nom

Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J'écris ton nom

Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J'écris ton nom

Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J'écris ton nom

Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J'écris ton nom

Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom

Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom

Sur l'absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom

Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom

Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer

Liberté.


UM ÚNICO PENSAMENTO

Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome

Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome

Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome

Nas jângales, no deserto
Nos ninhos e nas giestas
Nos ecos da minha infância
Escrevo teu nome

Nas maravilhas das noites
No pão branco da alvorada
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome

Em meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome

Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome

Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome

Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome

Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome

Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças regorgitantes
Escrevo teu nome

Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome

No fruto partido em dois
De meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome

Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome

No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome

Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome

Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome

Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome

Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome

Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome

E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar

Liberdade.


(Eluard, Paul. Selected Poems.
New York: Riverrun Press, 1987, págs. 30 e 36.
e
Andrade, Carlos Drummond de. Poesia traduzida.
São Paulo: Cosac Naify, 2011, págs. 132 – 139).

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Nós, leitores

 


   Quer parecer ao ensaísta argentino Alberto Manguel (1948-) que nós, leitores, não lemos apenas pelo prazer da leitura em si, nem pela erudição que pode tanto nos assimilar positivamente ao espírito ou alimentar nosso pedantismo. Lemos, diz-nos ele, ignorantemente: com desprezo, admiração, em movimentos longos, lentos, cheios de preconceitos ou de excessiva generosidade, movidos por uma paixão talvez inexplicável, que confere às grandes obras um poder insondável sobre nossas vidas.
    É, provavelmente, quanto basta para tentar justificar nossa afeição pela arte das palavras.

  “Sabemos que estamos lendo, mesmo quando suspendemos a descrença; sabemos porque lemos mesmo quando não sabemos como, mantendo em nossa mente, a um só tempo, o texto ilusivo e o ato de ler. Lemos para descobrir o final, pelo prazer da história, não pelo prazer da leitura em si. Lemos buscando, como rastreadores, esquecidos de onde estamos. Lemos distraidamente, pulando páginas. Lemos com desprezo, admiração, negligência, raiva, paixão, inveja, anelo. Lemos em lufadas de súbito prazer, sem saber o que provocou esse prazer. ‘O que é, no fim das contas, essa emoção?’ – pergunta Rebecca West depois de ler o Rei Lear.
  ‘Que poder têm as grandes obras de arte sobre minha vida para fazer com que eu me sinta tão contente?’ Não sabemos: lemos ignorantemente. Lemos em movimentos longos, lentos, como que pairando no espaço, sem peso. Lemos cheios de preconceitos, com malignidade. Lemos generosamente, arranjando desculpas para o texto, preenchendo lacunas, corrigindo erros. E às vezes, quando as estrelas são favoráveis, lemos de um único fôlego, com um arrepio, como se alguém ou algo tivesse ‘caminhado sobre nosso túmulo’, como se uma memória tivesse subitamente sido resgatada de um lugar no fundo de nós mesmos – o reconhecimento de algo que nunca soubemos que estava lá, ou de algo que sentimos vagamente, como um bruxuleio ou uma sombra, cuja forma fantasmagórica ergue-se e instala-se em nós sem que possamos ver o que é, deixando-nos mais velhos e sábios.”


(Manguel, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, págs. 291  292).

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Drummond: A Flor e a Náusea

 


    Os versos de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), meu poeta favorito, representam uma das mais elegantes formas de questionamento, reflexão e protesto. Eles nos mostram que, mesmo quando nos acometer uma náusea da rua cinzenta, do tempo pobre e do mundo perdido, podemos encontrar refúgio na grandeza das coisas simples. Porque, como quer Drummond, uma flor, ainda que feia, é maior do que o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


(Andrade, Carlos Drummond de. Nova reunião: 23 livros de poesia
São Paulo: Companhia das Letras, 2015, págs. 106 – 107).

Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...