terça-feira, 3 de junho de 2025

Georg Trakl: Meu Coração ao Entardecer

 


    Entoando sua típica verve enigmática, carregada, a um só tempo, de timbres frementes e serenos – fato característico de grande parte dos versos expressionistas –, o austríaco Georg Trakl (1887-1914) demonstra-nos que bem sabe dispor as palavras para pintar um mundo indiferente, envelhecido e cansado, mas ainda capaz de revelar ricos resquícios de Beleza.
    Tal como o tênue lampejo da taverna que fulgura ao viajante solitário, Trakl, cálido na vastidão escura, cintila entre a permanência e o abandono. E a linda embriaguez proporcionada pelo vinho na paisagem crepuscular não é apenas física, mas transcendental — culminando, enfim, num gesto de entrega ao doce absurdo da vida. É no beijo do orvalho noturno, afinal, que a existência nos parece suspirar um pouco de poesia.


My Heart at Evening

At nightfall you hear the bat shriek.
Two black horses leap across the meadow.
A red maple rustles.
Along the way a small tavern appears to the traveler.
The young wine and nuts are delicious.
It is splendid to stagger, drunk, through the darkening forest.
Through black branches comes the ringing of grieving bells;
Dew covers your face.

(em Selected Poems of Georg Trakl, trad. de Daniel Simko, p. 39.)

Meu Coração ao Entardecer

Quando cai a noite, tu ouves o morcego.
Negros, dois cavalos saltam pelo gramado.
Sussurra um bordo rubro.
Uma pequena taverna brilha ao andarilho.
Delicioso é o novo vinho, a noz nova é deliciosa
e é maravilhoso cambalear bêbado pelo bosque vespertino!
Entre galhos pretos, ressoam tristes sinos;
o orvalho te beija o rosto.

Emil Nolde: Autumn Evening (1924)


Foto borrada em Viena, capital da Áustria natal de Georg Trakl (7/24)



segunda-feira, 5 de maio de 2025

Mark Fisher: como entender a depressão?



    Mark Fisher (1968-2017), que se suicidou há poucos anos, foi um homem corajoso. Fisher lecionou na prestigiosa Universidade de Londres, ministrou palestras talentosamente provocativas e escreveu preciosíssimas obras sobre a situação de liquidez cultural em nossos tempos – mas nada disto lhe atesta a coragem. O que torna Fisher um homem corajoso é o fato de ele ter conquistado tudo aquilo que conquistou enquanto batalhava contra um incansável demônio interno, sobrevivendo, valente, até os quarenta e oito anos.
    Como podemos entender a depressão? É possível que nunca encontremos uma resposta a essa pergunta. Mesmo assim, sempre haverá quem nos ajude a buscá-la. E, transcorrida mais de uma década das publicações de seus principais textos, nós ainda temos em Fisher uma preciosa fonte de ajuda: pois que provou, por experiência própria, o sabor de sofrer, o pensador nos elucida nosso sofrimento.
    Aprendemos de seus escritos que se, por um lado, cumpre-nos procurar extirpar individualmente as raízes de nossa depressão, não devemos, por outro, esquecer que estamos inseridos em um sistema que se alimenta da dor. Parece que o capital já nos domou o inconsciente coletivo: no coração de nossa sociedade, não fulgura mais a crença em qualquer alternativa real ao neoliberalismo selvagem; os horizontes utópicos se perderam e só nos resta a “submissão fatalista”. É claro que as consequências emocionais são graves.
    Não separemos, portanto, a visão crítica de Fisher de sua própria tristeza, íntima, inexprimível e intransferível. O pensador percebeu que, longe de ser, como a ideologia dominante afirma, uma enfermidade meramente individual, a depressão é, em nossos tempos, um trágico fenômeno coletivo. É por isso que suas palavras nos convidam a converter nosso sofrimento privatizado em raiva politizada. E não são apenas os deprimidos, questionadores e inconformados que se voltam a Fisher, mas todos aqueles que buscam livrar-se de ilusões sobre o estado de coisas no mundo, para, então, assumir o desafio de reconstruir o futuro.


    My depression was always tied up with the conviction that I was literally good for nothing. I spent most of my life up to the age of thirty believing that I would never work. In my twenties I drifted between postgraduate study, periods of unemployment and temporary jobs. In each of these roles, I felt that I didn’t really belong – in postgraduate study, because I was a dilettante who had somehow faked his way through, not a proper scholar; in unemployment, because I wasn’t really unemployed, like those who were honestly seeking work, but a shirker; and in temporary jobs, because I felt I was performing incompetently, and in any case I didn’t really belong in these office or factory jobs, not because I was ‘too good’ for them, but – very much to the contrary – because I was over-educated and useless, taking the job of someone who needed and deserved it more than I did.
    For some time now, one of the most successful tactics of the ruling class has been responsibilisation. Each individual member of the subordinate class is encouraged into feeling that their poverty, lack of opportunities, or unemployment, is their fault and their fault alone. Individuals will blame themselves rather than social structures, which in any case they have been induced into believing do not really exist (they are just excuses, called upon by the weak). We must understand the fatalistic submission of the UK’s population to austerity as the consequence of a deliberately cultivated depression. This depression is manifested in the acceptance that things will get worse (for all but a small elite), that we are lucky to have a job at all (so we shouldn’t expect wages to keep pace with inflation), that we cannot afford the collective provision of the welfare state. Collective depression is the result of the ruling class project of resubordination. For some time now, we have increasingly accepted the idea that we are not the kind of people who can act. This isn’t a failure of will any more than an individual depressed person can ‘snap themselves out of it’ by ‘pulling their socks up’. The rebuilding of class consciousness is a formidable task indeed, one that cannot be achieved by calling upon ready-made solutions – but, in spite of what our collective depression tells us, it can be done. Inventing new forms of political involvement, reviving institutions that have become decadent, converting privatised disaffection into politicised anger: all of this can happen, and when it does, who knows what is possible?
    (em https://theoccupiedtimes.org/?p=12841)

    Depression is endemic. It is the condition most dealt with by the National Health Service, and is afflicting people at increasingly younger ages. The number of students who have some variant of dyslexia is astonishing. It is not an exaggeration to say that being a teenager in late capitalist Britain is now close to being reclassified as a sickness. This pathologization already forecloses any possibility of politicization. By privatizing these problems — treating them as if they were caused only by chemical imbalances in the individual’s neurology and/or by their family background — any question of social systemic causation is ruled out.
    The current ruling ontology denies any possibility of a social causation of mental illness. The chemico-biologization of mental illness is of course strictly commensurate politicization. Considering chemico-biological problem mental has illness enormous with its dean _ individual benefits for capitalism. First, it reinforces Capital’s drive towards atomistic individualization (you are sick because of your brain chemistry). Second, it provides an enormously lucrative market in which multinational pharmaceutical companies can peddle their pharmaceuticals (we can cure you with our SSRIs). It goes without saying that all mental illnesses are neurologically instantiated, but this says nothing about their causation. If it is true, for instance, that depression is constituted by low serotonin levels, what still needs to be explained is why particular individuals have low levels of serotonin. This requires a social and political explanation; and the task of repoliticizing mental illness is an urgent one if the left wants to challenge capitalist realism.

    (em Capitalist Realism, pp. 21 e 37)

    *

    Minha depressão sempre esteve entrelaçada à convicção de que eu, literalmente, não servia para nada. Passei a maior parte da vida, até os trinta anos, acreditando que jamais conseguiria trabalhar. Durante os meus vinte, vaguei entre estudos de pós-graduação, períodos de desemprego e empregos temporários. Em cada uma dessas situações, sentia que não pertencia de fato a lugar algum — nos estudos, porque eu era um diletante que havia enganado o sistema de alguma forma, não um verdadeiro acadêmico; no desemprego, porque não me sentia um desempregado “legítimo”, como aqueles que buscavam trabalho honestamente, e sim um negligente; e, nos empregos temporários, porque acreditava estar desempenhando mal minhas funções e, de qualquer forma, não pertencia àquele ambiente de escritório ou fábrica — não por ser “bom demais” para ele, mas justamente o oposto: porque eu era excessivamente instruído e inútil, ocupando o lugar de alguém que precisava e merecia muito mais do que eu.
    Há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a da responsabilização. Cada indivíduo das classes subordinadas é levado a acreditar que sua pobreza, sua falta de oportunidades ou seu desemprego são culpa sua — e apenas sua. As pessoas passam a culpar a si mesmas, em vez de questionar as estruturas sociais, que, de qualquer forma, foram ensinadas a acreditar que não existem de fato (são apenas desculpas inventadas pelos fracos). Temos de compreender a submissão fatalista da população britânica à austeridade como consequência de uma depressão cuidadosamente cultivada. Essa depressão se expressa na aceitação de que tudo só tende a piorar (para todos, exceto uma pequena elite), na ideia de que devemos nos sentir gratos por termos qualquer emprego (e portanto, não devemos esperar que os salários acompanhem a inflação) e na crença de que não podemos mais arcar com a provisão coletiva do Estado de bem-estar social. Essa depressão coletiva é o fruto de um projeto deliberado de ressubordinação por parte das elites. Há algum tempo, temos aceitado — pouco a pouco — a ideia de que não somos mais um povo capaz de agir. Isso não é um simples fracasso de vontade, assim como uma pessoa deprimida não pode simplesmente “sair dessa” com um gesto de força de vontade. Reconstruir uma consciência de classe é uma tarefa gigantesca, que não se resolverá com soluções prontas — mas, ao contrário do que nossa depressão coletiva nos faz crer, é algo possível. Inventar novas formas de participação política, revitalizar instituições que se tornaram decadentes, transformar o desalento privatizado em fúria politizada: tudo isso pode acontecer – e, quando acontecer, quem sabe o que será possível?

    A depressão é endêmica. É a condição mais tratada pelo Serviço Nacional de Saúde e afeta pessoas cada vez mais jovens. O número de estudantes que apresentam algum tipo de dislexia é surpreendente. Não é exagero dizer que ser adolescente na Grã-Bretanha do capitalismo tardio será logo considerado uma doença. E essa patologização já impede qualquer possibilidade de politização. Se privatizamos esses problemas — tratando-os como se fossem causados apenas por desequilíbrios químicos na neurologia do indivíduo e/ou por seu histórico familiar —, qualquer questionamento sobre uma causa social sistêmica é descartado.
    A ontologia dominante atual nega qualquer possibilidade de causalidade social para as doenças mentais. A quimicobiologização, é claro, está em perfeita sintonia com a despolitização. Considerar a doença mental como um problema quimicobiológico traz enormes benefícios para o capitalismo. Primeiro, reforça o impulso do Capital em direção à individualização atomística (você está doente por causa da química do seu cérebro). Segundo, fornece um mercado extremamente lucrativo no qual empresas farmacêuticas multinacionais podem vender seus medicamentos (nós podemos curar você com nossos ISRSs). É evidente que todas as doenças mentais têm uma base neurológica, mas isso nada diz sobre sua causa. Se for verdade, por exemplo, que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, ainda assim é necessário explicar por que determinados indivíduos têm baixos níveis de serotonina. Isso exige uma explicação social e política; e a tarefa de repolitizar a doença mental é urgente, se a esquerda quiser desafiar o realismo capitalista.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Drummond: Passagem do Ano



     Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) era um homem de temperamento reservado, discreto e meditativo – mas sabia compor versos que, encarando valentemente as agruras da condição humana, celebram a realidade em todas as suas dimensões.
     Ao findar deste emblemático 2024 – ano, por um lado, de memoráveis viagens, amizades novas e muita poesia, e, por outro, da continuação do extermínio de crianças palestinas, destrutivas tragédias climáticas e da reeleição de Donald Trump –, convém que nos lembremos das palavras de nosso poeta-maior: “O último dia do ano/ não é o último dia do tempo.” A vida continuará, e nós – que presente do acaso! – continuaremos com ela. Apesar de tudo, merecemos viver. E merecemos contemplar, como queria Drummond, o alvorecer de renovados tempos.


Passagem do Ano

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com
sinfonia e coral,
que o tempo cará
repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


(n’A Rosa do Povo, de 1945)

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Cinquenta anos sem Nick Drake



     A morte de Nick Drake (1948-1974) completa, neste 25 de novembro de 2024, cinquenta anos.
     Nick Drake foi um dos músicos mais sensíveis que o século passado nos deu. Em suas canções, letras belíssimas unem-se a hábeis melodias de violão, formando uma espécie de poesia rara, outonal e profundamente tocante.
     Embora tenha refinado o agudo modelo lírico estabelecido por Jackson C. Frank, Bert Jansch e Bob Dylan, Nick foi quase anônimo em seu tempo: seus três álbuns – Five Leaves Left (1969), Bryter Layter (1971) e Pink Moon (1972) – contaram com péssimas vendas e ficaram reduzidos a um grupo bastante restrito de apreciadores, até porque o poeta recusava-se a performar shows ou dar entrevistas para divulgá-los. Entre decepções artísticas, crises pessoais e momentos de lancinante tristeza, Nick renunciou à vida aos vinte e seis anos, deixando-nos a lamentar muito o seu cedo falecimento – mas, também, a estimar a Beleza incomparável de sua obra e de seu legado.
     É pena que não posso dizer-lhe o quão imensamente eu o admiro. Como poucos, Nick Drake é um valioso amigo que sempre me oferece luz em tempos escuros.
     A seguir, traduzo alguns trechos da parte final de Nick Drake: The Biography, por Patrick Humphries. Deixo, além disso, links para as suas canções de que mais gosto.


     Nick was prone to sleepless nights, frequently prowling the house in the small hours. His mother, alert to his movements, would often get up and sit with him in the kitchen until he returned to bed. But that night, when Nick woke and went down to the kitchen, Molly slept on. No one will ever know what thoughts went through Nick Drake’s mind in the long and solitary, dark hours before dawn. Sometime on the morning of Monday 25 November 1974 – probably around 6a.m. – the extra Tryptizol he had taken that night caused Nick Drake’s heart to stop beating.
     That Nick Drake died so young is a terrible tragedy; not just because of who he was, but because of what he might have become. The potential of all those years left unlived. Nick Drake was a man of sincerity, an artist of tremendous calibre and one of the few entitled to be called unique. The fact that there is no film footage of Nick Drake performing undoubtedly feeds the myth. The photos – and there are few enough even of those – freeze-frame the image of Nick, shy and hesitant before the camera, capturing him for ever in the aspic of immortality: half-smiling at halfremembered memories.
     How Nick’s life would have developed had he lived, is of course the question which continues to fascinate those who have grown to love his music. If he had conquered his depression, would he have wanted to write and record again? Would he ever have felt capable of returning to his former life? Indeed is it possible to imagine a life for Nick which didn’t involve music?
     It is fascinating, but fruitless to speculate. We will never know. Even those closest to him could never know. It seems likely that not even Nick knew. In the end, though, Nick Drake was born, and died, the way he was. The sadness and introspection gave birth to the music. Had he been less contemplative, it is unlikely that he would have produced such inimitable music. And music was very important to Nick.
     Any valour and heroism in Nick’s all-too-short life came in the courage of his living. It can be seen in his proud but foolhardy determination to try to beat his illness on his own, and in the will to go back and record even after he had apparently given up hope and retreated to Tanworth. It came in the day-to-day battles with despair, the acceptance of a life unfulfilled and empty, and the continued, weary living of that life.
     But no life worth the name is ever that simple, and even the brief life of Nick Drake abounds with contradictions: the boy who seemed to personify the corrosive effects of loneliness, though he never really left his parents’ home; who found communication such an effort, but reached out so fluently, to so many, through his work. Perhaps in the end facts can only diminish the myth, but ultimately the life is more important. For whatever the truth about Nick Drake’s death, it remains a tragedy – just as his legacy of extraordinary songs remains a triumph, and a joyful one at that.

     –
     Nick era propenso a noites em claro, frequentemente perambulando pela casa durante a madrugada. Muitas vezes, sua mãe, atenta aos seus movimentos do filho, levantava-se e se sentava com ele na cozinha até que ele voltasse para a cama. Mas, naquela noite, quando Nick acordou, ela continuou dormindo.
     Ninguém jamais saberá que pensamentos passaram por sua mente nas longas, solitárias horas de escuridão antes da alvorada. Em algum momento da manhã de segunda-feira, 25 de novembro de 1974, provavelmente por volta das 6h, o Tryptizol extra que Nick havia tomado lhe parou o coração.
     Que Nick Drake tenha morrido tão jovem é uma tragédia terrível – não apenas por quem ele foi, mas por aquilo que ele poderia ter sido, por todo o potencial dos anos não vividos. Nick era alguém de profunda sinceridade, um artista de calibre excepcional e um dos poucos que realmente merecem ser considerados únicos. Certamente, a ausência de qualquer filmagem em que ele se apresente alimenta o mito. As fotografias – e mesmo elas são raras – guardam a imagem de Nick, tímido e hesitante diante da câmera, preservando-o para sempre na moldura imutável da imortalidade: um meio-sorriso evocando memórias meio esquecidas.
     Como a vida de Nick teria sido se ele houvesse sobrevivido é uma questão que continua cativando aqueles que aprenderam a amar sua música. Se tivesse superado a depressão, será que desejaria voltar a compor e gravar? Será que algum dia se sentiria capaz de retornar à sua antiga vida? É possível, afinal, imaginar uma existência para Nick que não estivesse entrelaçada com a música?
     É uma especulação fascinante, mas inútil. Nós nunca saberemos. Aqueles mais íntimos dele não sabiam. Parece que nem sequer o próprio Nick sabia. No fim, porém, Nick Drake nasceu e morreu como ele era. A tristeza e a introspecção deram origem à sua música. Tivesse ele sido menos contemplativo, é improvável que produzisse uma obra musical tão inimitável. E música era algo muito importante para Nick.
     O verdadeiro heroísmo da breve existência de Nick está em sua coragem de existir. Está em sua tolamente orgulhosa determinação de vencer sozinho a doença que o abatia. Está em sua perseverança em retornar a gravar canções mesmo tendo aparentemente desistido de tudo e se refugiado na casa de seus pais, em Tanworth. Está em suas lutas diárias contra a desesperança. Está em aceitar uma vida incompleta e vazia – e, não obstante, em continuar a viver a vida.
     Ainda assim, nenhuma vida que valha a pena é tão simples, e até mesmo a de Nick guarda contradições: o garoto que parecia personificar os efeitos corrosivos da solidão nunca realmente saiu da casa dos pais; o poeta que sentia uma dificuldade tremenda de exercer a comunicação foi capaz de comunicar-se tão fluentemente com tantas pessoas por meio de seus versos. Talvez os fatos possam diminuir o mito, mas, no final das contas, a vida é mais importante. Seja qual for a verdade sobre a morte de Nick Drake, ela continua sendo uma tragédia – assim como o seu legado de músicas extraordinárias continua sendo um triunfo, um triunfo que celebramos com alegria.


     The Thoughts of Mary Jane: https://music.youtube.com/watch?v=XpR_OdvyRNI&si=TP7TuqsDZIroI-_l;
     Fly: https://music.youtube.com/watch?v=aCCn2Mal5mM&si=8wdjbKYR6PiHlf3T;
     Road: https://music.youtube.com/watch?v=jpk32L8Bb4c&si=Ow6EwPOf1PiZL0dR;
     Things Behind the Sun: https://music.youtube.com/watch?v=j14PgxHghjQ&si=gyNDMQPhsjF4X0cP;
     From the Morning: https://music.youtube.com/watch?v=xPe5ZQx0OpQ&si=bY_AYIWF_LAY1J34;
     Rider on the Wheel: https://music.youtube.com/watch?v=54zfEaaHURM&si=Au_WN2fsDChzS0BR (presente em um álbum póstumo, Made To Love Magic, de 2004).


Túmulo de poeta em Tanworth-in-Arden, inscrito com versos de From the Morning

Noite em Londres, cidade que o poeta costumava frequentar (3/24)

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Werner Jaeger: o ideal grego


     O alemão Werner Jaeger (1888-1961) foi um humanista tão arcaico quanto moderno: filólogo dedicado ao estudo dos textos clássicos, Jaeger defendia, em tempos de loucura nazista, que a grandeza do ser humano transcende critérios raciais e reside em sua capacidade de pensar sobre o mundo, de exercer a cultura, de contribuir para a civilização.
     Para o professor, é a alma, e não a etnia, aquilo que une o ocidental do presente ao grego da antiguidade. E é só através do cultivo de valores humanísticos que podemos descobrir, individualmente, os nossos próprios ideais de vida. Esses valores, ensina-nos Jaeger, encontram na antiga Grécia a sua expressão mais completa, refinada e nobre: “Outras nações fizeram deuses, reis, espíritos; só os gregos fizeram homens.”
     A cultura, portanto, vive, flui, altera-se – mas sua essência permanece imutável. Prova disto é o fato de uma Grécia derrotada ter, no fim, vencido: conquistados por Roma, os gregos foram o povo que os romanos mais imitaram. Cumpre-nos seguir o exemplo do humanista que, rejeitando a influência das massas de seu tempo, escolheu ser o indivíduo Werner Jaeger e buscar, por si próprio, um ideal de humanidade.
     A seguir, traduzo alguns breves excertos do início de sua magnum-opus, a indispensável Paideia: The Ideals of Greek Culture, nas palavras em inglês de Gilbert Highet.


     Every nation which has reached a certain stage of development is instinctively impelled to practice education. Education is the process by which a community preserves and transmits its physical and intellectual character. For the individual passes away, but the type remains.
     Greece is in a special category. From the point of view of the present day, the Greeks constitute a fundamental advance on the great peoples of the Orient, a new stage in the development of society. They established an entirely new set of principles for communal life. However highly we may value the artistic, religious, and political achievements of earlier nations, the history of what we can truly call civilization – the deliberate pursuit of an ideal – does not begin until Greece.
     Greece is much more than a mirror to reflect the civilization of today, or a symbol of our rationalistic consciousness of selfhood. The creation of any ideal is surrounded by all the secrecy and wonder of birth; and, with the increasing danger of degrading even the highest by daily use, men who realize the deeper values of the human spirit must turn more and more to the original forms in which it was first embodied, at the dawn of historical memory and creative genius.
     Man is the center of their thought. Their anthropomorphic gods; their concentration of the problem of depicting the human form in sculpture and even in painting; the logical sequence by which their philosophy moved from the problem of the cosmos to the problem of man, in which culminated with Socrates, Plato, and Aristotle; their poetry, whose inexhaustible theme from Homer throughout all the succeeding centuries is man, his destiny, and his gods; and finally their state, which cannot be understood unless viewed as the force which shaped man and man's life – all these are separate rays from one great light. They are the expressions of an anthropocentric attitude to life, which pervades everything felt, made, or thought by the Greeks. Other nations made gods, kings, spirits: the Greeks alone made men.
     But what is the ideal man? It is the universally valid model of humanity which all individuals are bound to imitate. The Greeks who lived at the beginning of the Roman empire were the first to describe the masterpieces of the great age of Greece as 'classical' in the timeless sense – partly as formal patterns for subsequent artists to imitate, partly as ethical models for posterity to follow. At that time, Greek history had become part of the life of the world-wide empire of Rome, the Greeks had ceased to be an independent nation, and the only higher ideal which they could still follow was the preservation and veneration of their own tradition.


     –

     Toda nação que atinge um certo estado de desenvolvimento é instintivamente impelida a praticar a educação. A educação consiste no processo através do qual uma comunidade preserva e transmite o seu carácter físico e intelectual. Porque o indivíduo passa, mas o tipo permanece.
     A Grécia pertence a uma categoria especial. Do ponto de vista atual, os gregos constituem um fundamental avanço em relação aos grandes povos do Oriente – uma nova etapa no desenvolvimento da sociedade. Eles estabeleceram um conjunto inteiramente novo de princípios à vida em comunidade. Por mais que valorizemos as realizações artísticas, religiosas e políticas das nações anteriores, a história daquilo a que podemos verdadeiramente chamar civilização – a busca deliberada de um ideal – não começa antes da Grécia.
     A Grécia é bem mais do que um espelho que reflete a sociedade de hoje ou um símbolo da nossa consciência racionalista do “eu”. A criação de qualquer ideal carrega o segredo e a maravilha do nascimento; e, diante do crescente perigo de a presente cultura de massas degradar até mesmo aquilo que é mais elevado, quem compreende os valores profundos do espírito humano deve voltar-se, cada vez mais, para as formas originais em que esses valores encarnaram-se: na aurora da memória histórica e do gênio criativo.
     O homem é o centro do pensamento grego. Seus deuses antropomórficos; seu engenho de representar a forma humana na escultura e na pintura; sua filosofia, que, em sequência lógica, passou do problema do cosmos para o problema do homem, culminando com Sócrates, Platão e Aristóteles; sua poesia, cujo tema inesgotável, desde Homero ao longo de todos os séculos seguintes, é o homem, o destino do homem e os deuses do homem; e, finalmente, seu Estado, que só pode ser compreendido se visto como a força que moldou o homem e a sua vida – todos estes são raios separados de uma grande luz, são expressões de uma atitude antropocêntrica em relação à vida que permeia tudo aquilo que é sentido, consumado ou pensado pelos gregos. Outras nações fizeram deuses, reis, espíritos; só os gregos fizeram homens.
     Mas o que é o homem ideal? É o modelo de humanidade universalmente válido em que todos os indivíduos devem inspirar-se. Os gregos vivendo no início do Império Romano foram os primeiros a descrever as obras-primas da grande época da Grécia como “clássicas” no sentido atemporal – em parte como padrões formais que os artistas subsequentes deveriam imitar, em parte como modelos éticos que a posteridade deveria seguir. Àquela altura, a história grega havia tornado-se parte da vida do império mundial de Roma, os gregos haviam deixado de ser uma nação independente e o único ideal superior que ainda podiam seguir era a preservação e a veneração da sua própria tradição.


 Erechtheion (Acrópole, Atenas, 9/24)

domingo, 10 de novembro de 2024

Louise Glück: O Triunfo de Aquiles

 


     Louise Glück (1943-2023), que nos deixou no ano passado, produziu uma lírica de extraordinária sensibilidade. Não é à toa que, agraciada com láureas diversas, a poeta pôde fruir a gratidão de apaixonados leitores pelos mais distintos países – entre os quais, embora tardiamente, está o Brasil.
     Os inesgotáveis versos de Homero são uma fonte de que sua obra constantemente bebe. No poema a seguir, de 1985, Glück volta-se a um dos mais tocantes episódios da Ilíada (Canto XVIII) para explorar a vulnerabilidade inescapável da trágica condição humana – e, ao mesmo tempo, trazer à luz a Beleza que emana dessa condição. 
     Se o aspecto divino de Aquiles o torna o guerreiro mais poderoso, temido e invejado entre os gregos, é sua humanidade que verdadeiramente atravessa os milênios e ainda nos emociona. Quando morre Pátroclo, seu melhor amigo – e possível amante –, a tristeza que lacera o coração do herói é tão profunda, que os deuses percebem-no “um homem já falecido”. Não obstante todas as vitórias, espólios e láureas da glória, Aquiles chorou: nem mesmo o maior dos mortais pode escapar da dor de ser humano.
     É possível, então, enxergarmos a mortalidade como um tipo de maldição. Mas Glück inverte as perspectivas: é apenas em nossa finitude que podemos, verdadeiramente, sentir, sofrer e amar. Os deuses, invulneráveis aos infortúnios que tanto nos afligem, são, por definição, incapazes da nobreza em atos de coragem, altruísmo e, neste caso, de amor. Ao fim e ao cabo, Aquiles personifica essa verdade: Aquiles não triunfa por gozar da fama, possuir riquezas ou vencer Heitor; Aquiles triunfa porque sabe ser excessivamente humano – porque sente, porque sofre e, acima de tudo, porque ama.


The Triumph of Achilles

In the story of Patroclus
no one survives, not even Achilles
who was nearly a god.
Patroclus resembled him; they wore
the same armor.

Always in these friendships
one serves the other, one is less than the other:
the hierarchy
is always apparent, though the legends
cannot be trusted—
their source is the survivor,
the one who has been abandoned.

What were the Greek ships on fire
compared to this loss?

In his tent, Achilles
grieved with his whole being
and the gods saw

he was a man already dead, a victim
of the part that loved,
the part that was mortal.


O Triunfo de Aquiles

Na lenda de Pátroclo,
ninguém sobrevive, nem mesmo Aquiles,
que era quase um deus.
Pátroclo parecia-se com ele: ambos trajavam
a mesma armadura.

Em amizades assim, um
sempre serve ao outro, um é menos do que o outro:
a hierarquia
fica sempre clara, embora as lendas
não sejam confiáveis –
sua fonte é aquele que sobreviveu,
aquele que foi abandonado.

O que os navios em chamas eram
comparados com essa perda?

Em sua tenda, Aquiles
sofria de todo o ser – 
e os deuses viram

que ele era um homem já falecido, uma vítima
da parte que amava,
a parte que era mortal.


Relíquia que retrata Aquiles curando as feridas de Pátroclo em Tróia (Altes Museum, Berlim, 7/24)

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Heráclito de Éfeso: dialética e poesia


Etienne Parrocel, Portrait du Philosophe Héraclite

     Solitário membro de uma estirpe gregária, Heráclito de Éfeso (aprox. 500 a.C.) parece não ter contado com discípulos ou associados pessoais. Em uma época que consideramos ainda fundamentalmente oral, sua influência exerceu-se quase apenas por meio do poder da palavra escrita, produzindo, dentro de uma ou duas gerações, alguns convictos seguidores, os “heracliteanos”.
     Como toda prosa antes de Heródoto e toda filosofia antes de Platão, as linhas originais de Heráclito se perderam. Para acessá-las, nós dependemos inteiramente de citações, paráfrases e relatos posteriores que tenham sobrevivido ao declínio da civilização antiga. A unidade intelectual de sua composição, contudo, permanece evidente nos fragmentos que nos restam: o tema central do pensamento de Heráclito consiste em afirmar diretamente a própria confluência de opostos. Não deixamos de notar pontos de contato com o zoroastrismo, com os Upanishads, com o Tao – e, em tempos mais modernos, com as ideias de Schopenhauer, de Emerson e de Nietzsche.
     Heráclito não é apenas um filósofo, mas, também, um poeta – um poeta que escolheu falar-nos em tons crípticos, metafóricos e proféticos. Hoje, celebramos suas linhas belas e inovadoras: o pensador de Éfeso foi o primeiro a descobrir, aceitar e amar a permanência na mudança, a ordem no paradoxo, a harmonia no caos. “Deus”, Heráclito nos ensina, é “dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome” – ou seja: coisas que nos podem parecer contrárias, inimigas e inconciliáveis são, na verdade, diferentes manifestações da mesma essência universal, eterna e misteriosa.
     A seguir, traduzo, do inglês (Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus) e do meu deprimente grego, alguns de seus fragmentos que me são especialmente significativos.


     κόσµον, τὸν αὐτὸν ἁπάντων, οὔτε τις θεῶν, οὔτε ἀνθρώπων ἐποίησεν, ἀλλ' ἦν ἀεὶ καὶ ἔστιν καὶ ἔσται πῦρ ἀείζωον, ἁπτόµενον µέτρα καὶ ἀποσϐεννύµενον µέτρα. 
     The ordering, the same for all, no god nor man has made, but it ever was and is and will be: fire everliving, kindled in measures and in measures going out.
     A essência universal, que rege igualmente a tudo quanto existe, não nasceu de qualquer deus ou de qualquer homem, mas sempre foi, é e será: fogo eterno, acendendo-se e apagando-se em constante ritmo.

*

     οὐδὲ θνητῆς οὐσίας δὶς ἅφασθαι κατὰ ἕξιν· ἀλλ΄ὀξύτητι καὶ τάχει µεταϐολῆς σκίδνησι καὶ πάλιν συνάγει καὶ πρόσεισι καὶ ἄπεισι. 
 –
     One cannot step twice into the same river, nor can one grasp any mortal substance in a stable condition, but it scatters and again gathers; it forms and dissolves, and approaches and departs.
     Ninguém pode pisar duas vezes o mesmo rio; ninguém pode apreender a qualquer substância mortal em condições estáveis: todas as coisas se fragmentam e se recompõem, formam-se e se dissolvem, vêm e vão.

*

     ὁ ἥλιος νέος ἐφ' ἡµέρῃ ἐστίν
     The sun is new every day
     O sol é novo a cada dia

*

     τὸ φρονεῖν ἀρετὴ µεγίστη, καὶ σοφίη ἀληθέα λέγειν καὶ ποιεῖν κατὰ φύσιν ἐπαΐοντας. 
     Thinking well is the greatest excellence and wisdom: to act and speak what is true, perceiving things according to their nature.
     Pensar corretamente é a mais sábia das excelências: dizer aquilo que é verdade e agir de acordo com a verdade, compreendendo as coisas conforme a sua natureza.

*

     ἦθος ἀνθρώπῳ δαίµων
     Man’s character is his fate.
     O nosso caráter é o nosso destino.

*

     ἀνθρώποις γίνεσθαι ὁκόσα θέλουσιν οὐκ ἄµεινον. νοῦσος ὑγιείην ἐποίησεν ἡδὺ, κακὸν ἀγαθόν, λιµὸς κόρον, κάµατος ἀνάπαυσιν. 
     It is not better for human beings to get all they want. It is disease that makes health sweet and good, hunger satiety, weariness rest.
     Não convém que tenhamos tudo aquilo que queremos. É a doença que torna a doce saúde valiosa; fome, saciedade; fadiga, descanso.

*

     χρυσὸν γὰρ οἱ διζήµενοι γῆν πολλὴν ὀρύσσουσι καὶ εὑρίσκουσιν ὀλίγον. 
     Seekers of gold dig up much earth and find little.
     Aqueles que buscam ouro hão de cavar muita terra e encontrar pouco.

*

     κακοὶ µάρτυρες ἀνθρώποισιν ὀφθαλµοὶ καὶ ὦτα βαρϐάρους ψυχὰς ἐχόντων. 
     Eyes and ears are poor witnesses for men if they have barbarian souls.
     Olhos e ouvidos são precários instrumentos para homens de almas bárbaras.

*

     τίς γὰρ αὐτῶν νόος ἢ φρήν; δήµων ἀοιδοῖσι πείθονται καὶ διδασκάλῳ χρείωνται ὁµίλῳ οὐκ εἰδότες ὅτι οἱ πολλοὶ κακοί, ὀλίγοι δὲ ἀγαθοί . 
     What wit or understanding do they have? They believe the poets of the people and take the mob as their teacher, not knowing that the many are worthless, good men are few.
     Que inteligência ou sabedoria eles têm? Eles deixam-se instruir pelos cantores do populacho e tomam as massas por mestres, jamais entendendo que os muitos são descartáveis: homens valiosos são poucos.

*

     τῷ µὲν θεῷ καλά πάντα καὶ ἀγαθὰ καὶ δὶκαια, ἄνθρωποι δὲ ἅ µὲν ἄδικα ὑπειλήφασιν ἃ δὲ δίκαια. 
     For god all things are fair and good and just, but men have taken some things as unjust, others as just.
     Para deus, todas as coisas são belas, boas e justas, mas os homens tomam algumas por justas e outras, por injustas.

*

     ὁ θεὸς ἡµέρη εὐφρόνη, χειµὼν θέρος, πόλεµος εἰρήνη, κόρος λιµός, ἀλλοιοῦται δὲ ὅκωσπερ, ὁπόταν συµµιγῇ θυώµασιν ὀνοµάζεται καθ΄ ἡδονὴν ἑκάστου. 
     The god: day and night, winter and summer, war and peace, satiety and hunger. It alters, as when mingled with perfumes, it gets named according to the pleasure of each one.
     Deus: dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome. Ele se altera – como alteram-se distintos odores quando os mesclamos – e recebe diferentes nomes de acordo com cada um.

*

     ὁδὸς ἄνω κάτω µία καὶ ὡυτή. 
     The way up and down is one and the same.
     O caminho para cima e o caminho para baixo são o mesmo.

*

     συνάψιες ὅλα καὶ οὐχ ὅλα, συµφερόµενον διαφερόµενον, συνᾷδον διᾷδον, καὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα. 
     Graspings: wholes and not wholes, convergent divergent, consonant dissonant, from all things one and from one thing all.
     Fagulhas de compreensão: totalidades e fragmentos, divergente convergente, dissonante consonante – de tudo, um; de um, tudo.

No Vaticano, a famosa Escola de Atenas, de Rafael, retrata Heráclito (de túnica lilás) sentado ao pé da escada, meditando alheio aos demais. (Roma, 7/24)

Georg Trakl: Meu Coração ao Entardecer

       Entoando sua típica verve enigmática, carregada, a um só tempo, de timbres frementes e serenos – fato característico de grande parte ...