quarta-feira, 16 de julho de 2025

Andrei Tarkovsky: arte, fé e luz



    Para Andrei Tarkovsky (1932-1986), o indivíduo que se abre com sinceridade à arte experiencia um mistério capaz de mudar-lhe a alma. Penso que ele tem razão: ao longo de sua vida relativamente breve, o mestre esteve por trás de filmes que, formando, para mim, o mais elevado píncaro a que a arte do cinema pode chegar, transformam-me como a retornar de um exílio íntimo, tocado por algo que não compreendo, mas que sei ser verdadeiro.
    Pouco antes de morrer, Tarkovsky publicou Sculpting in Time, pequeno livro em que vemos depuradas suas ideias a respeito do tempo, da modernidade, da psique, do divino e, é claro, da arte. E a “arte”, diz-nos, “nasce e se afirma onde quer que haja um anseio insaciável pelo ideal”. Alheio ao jargão técnico e à vaidade autoral, o que sua obra nos revela é alguém para quem o cinema foi uma senda de salvação, um labor quase religioso de conferir imagem ao indizível, de tornar visível o que os olhos não enxergam: “Interessa-me o homem”, proclama, “pois ele contém dentro de si um universo.”
    É, afinal, na luz escassa a iluminar solidão, musgo e silêncio que seus filmes nos convidam a caminhar. Num mundo “onde o sofrimento humano clama aos céus”, o que nos salva são gestos lentos, humildes e de fé tão profunda que, ao desabrocharem, devolvem-nos o amor, a contemplação e o milagre como formas últimas da Verdade. Qual lenda do Monge que “passo a passo, balde após balde, levava água colina acima para regar a árvore seca, acreditando de forma absoluta que seu gesto era necessário — e nunca, por um instante sequer, duvidando do poder milagroso de sua fé em Deus. Viveu o suficiente para ver o milagre: numa manhã, a árvore explodiu em vida, seus galhos cobertos de folhas novas. E esse ‘milagre’ não é nada além da verdade.”


    Antes de adentrar os problemas particulares da natureza da arte cinematográfica, considero importante definir minha compreensão do objetivo último da arte enquanto tal. Por que a arte existe? Quem dela necessita? Alguém realmente necessita dela? Estas são perguntas feitas não apenas pelo poeta, mas, também, por qualquer pessoa que aprecia a arte — ou, na expressão tão sintomática da relação entre a arte e seu público no século XX, o “consumidor”.
    A função que cabe à arte não é, como frequentemente se presume, a de transmitir ideias, pensamentos, ou servir de exemplo. O propósito da arte é preparar o ser humano para a morte, arar e lavrar sua alma, tornando-a capaz de se voltar para o bem. Tocado por uma obra-prima, o indivíduo sente dentro de si o mesmo chamado da verdade que levou o artista ao ato criativo. Quando se estabelece um vínculo entre a obra e seu observador, este experiencia algo sublime e purificador. Na aura que une as obras-primas ao público, revelam-se os melhores aspectos de nossa alma, e ansiamos por libertá-los. É nesses momentos que reconhecemos e descobrimos a nós mesmos, os abismos insondáveis do nosso próprio potencial e os confins mais longínquos de nossas emoções.
    A arte nasce e se afirma onde quer que haja um anseio atemporal e insaciável pelo espiritual, pelo ideal: esse anseio é o que leva as pessoas à arte. A feiura e a beleza se contêm mutuamente. A ideia de infinito não pode ser expressa em palavras nem mesmo descrita, mas pode ser intuída através da arte, que torna o infinito tangível. E se a visão de mundo fria, positivista e científica é como a subida de uma escada interminável, seu contraponto artístico sugere um sistema infinito de esferas, cada uma perfeita e autossuficiente. As obras de arte, ao contrário das científicas, não possuem nenhum objetivo prático em sentido material. Apenas quando uma pessoa está disposta a confiar no artista e consegue fazê-lo, de acreditar nele, é que pode tornar-se sensível e receptiva à arte.
    
    Ao olhar agora para os filmes que fiz até aqui, percebo que sempre desejei narrar a história de pessoas dotadas de uma liberdade interior, mesmo estando cercadas por outras que são, por dentro, dependentes e aprisionadas; pessoas cuja aparente fraqueza nasce da convicção moral e de uma postura ética, sendo, na verdade, um sinal de força.
    O Stalker parece frágil, mas, em essência, é ele o invencível em sua fé e em sua vontade de servir aos outros. A chegada da esposa do Stalker ao café onde ele e seus companheiros descansam confronta o Escritor e o Cientista com um fenômeno desconcertante que lhes é incompreensível. Diante deles, está uma mulher que sofreu misérias indizíveis por causa de seu marido e tem um filho doente com ele — e, mesmo assim, continua a amá-lo com a mesma devoção altruísta e inconsciente de sua juventude. Seu amor e sua entrega são o milagre final que pode ser contraposto à descrença, ao cinismo, ao vácuo moral que envenenam o mundo moderno, dos quais o Escrito e o Cientista são vítimas.


    Acredito que é sempre por meio de uma crise espiritual que a cura se manifesta. Uma crise espiritual é uma tentativa de reencontrar a si mesmo, de adquirir uma nova fé. É o destino de todos aqueles cujos objetivos habitam o plano espiritual. E como poderia ser diferente, se a alma anseia por harmonia e a vida é feita de dissonâncias? É disso que trata também Stalker: o herói atravessa momentos de desespero quando sua fé vacila, mas sempre reencontra sua vocação: servir àqueles que perderam suas esperanças e ilusões.
    Em Stalker, busco fazer um tipo de afirmação completa: a de que o amor humano, sozinho — e milagrosamente — é a prova contra a brutal constatação de que não há mais esperança para o mundo. Talvez, o Escritor vá à Zona em busca do Desconhecido, em busca do espanto, do assombro. Ao fim, porém, é simplesmente uma mulher que o surpreende com sua fidelidade, com a força de sua dignidade humana. Está tudo então sujeito à lógica; tudo poderia ser separado em partes e tabelado?
    
    Sempre me interessou o mundo interior de uma pessoa, e me é muito mais natural realizar uma jornada pela psicologia que molda a atitude do herói diante da vida, pelas tradições literárias e culturais que constituem o alicerce de seu universo espiritual. Tenho plena consciência de que, do ponto de vista comercial, seria muito mais vantajoso mover-me de um lugar a outro, introduzir planos de ângulos engenhosos, explorar paisagens exóticas e interiores imponentes. Mas, para aquilo que essencialmente busco, os efeitos externos apenas distanciam e embaralham o objetivo. Interessa-me o homem, pois ele contém dentro de si um universo. E para dar expressão à ideia, ao sentido da vida humana, não é necessário estender por trás disso, por assim dizer, uma tela abarrotada de acontecimentos.
    Sinto-me atraído pela figura do homem disposto a servir a uma causa superior, indisposto a aderir às noções convencionais de uma ‘moral’ mundana — ou até mesmo impossibilitado de fazê-lo; aquele que reconhece que o sentido da existência reside, acima de tudo, na luta contra o mal dentro de si mesmo, para que, ao longo da vida, consiga dar ao menos um passo rumo à perfeição espiritual. Pois a única alternativa a esse caminho é, infelizmente, o que leva à degeneração da alma. E a nossa existência cotidiana, com sua constante pressão por conformidade, torna o desvio fácil demais.
    De uma forma ou de outra, todos os meus filmes sustentam que as pessoas não estão sós nem abandonadas num universo vazio, mas ligadas por incontáveis fios ao passado e ao futuro; que, à medida que cada um vive sua vida, forja um elo com o mundo inteiro — com toda a história da humanidade. Num mundo onde há uma ameaça real de uma guerra capaz de aniquilar a espécie, onde os males sociais atingem proporções avassaladoras, onde o sofrimento humano clama aos céus, é preciso encontrar um caminho para que uma pessoa alcance a outra.
    Existe alguma esperança de sobrevivência para o homem, diante de todos os sinais evidentes de um iminente silêncio apocalíptico? Talvez, a resposta a essa pergunta esteja na lenda da árvore ressequida, privada da água da vida: o Monge, passo a passo, balde após balde, levava água colina acima para regar a árvore seca, acreditando de forma absoluta que seu gesto era necessário — e nunca, por um instante sequer, duvidando do poder milagroso de sua fé em Deus. Viveu o suficiente para ver o milagre: numa manhã, a árvore explodiu em vida, seus galhos cobertos de folhas novas. E esse “milagre” não é nada além da verdade.


    Before going on to the particular problems of the nature of cinematic art, I feel it is important to define my understanding of the ultimate aim of art as such. Why does art exist? Who needs it? Indeed does anybody need it? These are questions asked not only by the poet, but also by anyone who appreciates art—or, in that current expression all too symptomatic of the twentieth-century relationship between art and its audience—the ‘consumer’.
    The allotted function of art is not, as is often assumed, to put across ideas, thoughts, to serve as example. The aim of art is to prepare a person for death, to plough and harrow his soul, rendering it capable of turning to good. Touched by a masterpiece, a person feels in himself that same call of truth which prompted the artist to his creative act. When a link is established between the work and its beholder, the latter experiences a sublime, purging trauma. Within that aura which unites masterpieces and audience, the best sides of our souls are made known, and we long for them to be freed. In those moments we recognise and discover ourselves, the unfathomable depths of our own potential, and the furthest reaches of our emotions.
    Art is born and takes hold wherever there is a timeless and insatiable longing for the spiritual, for the ideal: that longing which draws people to art. Hideousness and beauty are contained within each other. The idea of infinity cannot be expressed in words or even described, but it can be apprehended through art, which makes infinity tangible. And if cold, positivistic, scientific cognition of the world is like the ascent of an unending staircase, its artistic counterpoint suggests an endless system of spheres, each one perfect and contained within itself. Works of art, unlike those of science, have no practical goal in any material sense. Only when а person is willing and able to trust the artist, to believe him, can he be sensitive and susceptible to art.
    
    Looking back now at the films I have made so far, it strikes me that I have always wanted to tell of people possessed of inner freedom despite being surrounded by others who are inwardly dependent and unfree; whose apparent weakness is born of moral conviction and a moral standpoint and in fact is a sign of strength.
    The Stalker seems to be weak, but essentially it is he who is invincible because of his faith and his will to serve others. The arrival of Stalker’s wife in the café where they are resting confronts the Writer and the Scientist with a puzzling, to them incomprehensible, phenomenon. There before them is a woman who has been through untold miseries because of her husband, and has had a sick child by him; but she continues to love him with the same selfless, unthinking devotion as in her youth. Her love and her devotion are that final miracle which can be set against the unbelief, cynicism, moral vacuum poisoning the modern world, of which both the Writer and the Scientist are victims.
    I believe that it is always through spiritual crisis that healing occurs. A spiritual crisis is an attempt to find oneself, to acquire new faith. It is the apportioned lot of everyone whose objectives are on the spiritual plane. And how could it be otherwise when the soul yearns for harmony, and life is full of discordance? This, too, is what Stalker is about: the hero goes through moments of despair when his faith is shaken; but every time he comes to a renewed sense of his vocation to serve people who have lost their hopes and illusions.
    In Stalker I make some sort of complete statement: namely that human love alone is—miraculously—proof against the blunt assertion that there is no hope for the world. Perhaps the Writer sets out for the Zone in order to encounter the Unknown, in order to be astonished and startled by it. In the end, however, it is simply a woman who startles him by her faithfulness and by the strength of her human dignity. Is everything subject to logic, then, and can it all be separated into its components and tabulated?
    
    I have always been interested in a person’s inner world, and for me it was far more natural to make a journey into the psychology that informed the hero’s attitude to life, into the literary and cultural traditions that are the foundation of his spiritual world. I am well aware that from a commercial point of view it would be far more advantageous to move from place to place, to introduce shots from one ingenious angle after another, to use exotic landscapes and impressive interiors. But for what I am essentially trying to do, outward effects simply distance and blur the goal which I am pursuing. I am interested in man, for he contains a universe within himself; and in order to find expression for the idea, for the meaning of human life, there is no need to spread behind it, as it were, a canvas crowded with happenings.
    I am drawn to the man who is ready to serve a higher cause, unwilling —or even unable—to subscribe to the generally accepted tenets of a worldly ‘morality’; the man who recognises that the meaning of existence lies above all in the fight against the evil within ourselves, so that in the course of a lifetime he may take at least one step towards spiritual perfection. For the only alternative to that way is, alas, the one that leads to spiritual degeneration; and our everyday existence and the general pressure to conform makes it all too easy to take the latter path.
    In one form or another all my films have made the point that people are not alone and abandoned in an empty universe, but are linked by countless threads with the past and the future; that as each person lives his life he forges a bond with the whole world, indeed with the whole history of mankind. In a world where there is a real threat of a war capable of annihilating mankind; where social ills exist on a staggering scale; where human suffering cries out to heaven — thе way must be found for one person to reach another.
    Has man any hope of survival in the face of all the patent signs of impending apocalyptic silence? Perhaps an answer to that question is to be found in the legend of the parched tree, deprived of the water of life: the Monk, step by step and bucket by bucket, carried water up the hill to water the dry tree, believing implicitly that his act was necessary and never for an instant wavering in his belief in the miraculous power of his own faith in God. He lived to see the Miracle: one morning the tree burst into life, its branches covered with young leaves. And that ‘miracle’ is surely no more than the truth.
(Sculpting in Time. Tradução de Kitty Hunter-Blair)




quarta-feira, 9 de julho de 2025

Alexandre Lobo: Tantalising Detachment



    Dentre as fascinantes figuras da religiosidade grega arcaica, uma permanece com olhos fixos naquilo que jamais poderá tocar. O suplício de Tântalo, fartamente examinado por milênios de poesia, prosa e pintura, ainda nos inquieta porque fala diretamente à nossa própria tragédia íntima: desejar, sempre, o que nos escapa.
“Quem”, afinal, “poderia afirmar que nunca sentiu uma agonia como a alegorizada nos infortúnios de Tântalo? Quem nunca viu seus desejos mais profundos serem rechaçados pela vida com zombaria, como se os próprios deuses quisessem lembrá-lo de sua impotência?”
    No texto a seguir, o meu amigo Alexandre Lobo retorna ao rei da Lídia para encontrar o espelho de uma angústia muito moderna — aquela que, indefinível, nasce do anseio por amor, por pertencimento, por sentido. Em ecos de Lenz, de Büchner e, mais importante, de Eckhart, Tantalising Detachment (título que, por sua elegância, prefiro manter idêntico na tradução ao nosso vernáculo) traça um caminho sinuoso que culmina, necessariamente, na redenção através do desapego, a maior das virtudes: Tântalo deverá perceber “que os deuses jamais lhe deviam coisa alguma e que ele próprio causou sua punição”. Assim, ele talvez passe a ver na dor um “caminho para a salvação” e descubra, como cabe a nós descobrir, “que tudo de que precisa já está dentro de si próprio”.


    Tantalising Detachment

    Merriam-Webster as such defines the word tantalise: to tease or torment by or as if by presenting something desirable to the view but continually keeping it out of reach. Its etymology has its roots—as all good things—in Ancient Greece. It references the cruel fate that beset Tantalus, the ancient king of Lydia. Let us turn to Chapman’s Homer, in the closing verses of The Odysseys’ eleventh book, for a detailed depiction of Tantalus’s punishment:

[ - - ] I saw likewise stand, ◡ ◡ ◡
Up to the chin, amidst a liquid lake,
Tormented Tantalus, yet could not slake
His burning thirst. Oft as his scornful cup
Th’ old man would taste, so oft ’twas swallow’d up,
And all the black earth to his feet descried,
Divine pow’r (plaguing him) the lake still dried.
About his head, on high trees, clust’ring, hung
Pears, apples, granates, olives ever-young,
Delicious figs, and many fruit-trees more
Of other burden; whose alluring store
When th’ old soul striv’d to pluck, the winds from sight,
In gloomy vapours, made them vanish quite.

    The myth of this most weighted down by misfortune—a possible origin for Tantalus’s name provided by Plato in his Cratylus—first caught my attention upon reading on Jakob Michael Reinhold Lenz, the forgotten and ill-fortuned poet whose fame today rests more on Georg Büchner’s unfinished novella written about him than on his own œuvre. Allow me to briefly explain. In the early 1770s, Lenz was a young poet representative of the Sturm und Drang, but his attempts to consolidate his reputation among the intellectual circle of Weimar ended in disgrace due, it seems, to his own whimsical nature. During this period he was acquainted with Goethe, who was already, albeit not firmly, established in the court of Weimar. They appeared to have been friends, but as Lenz’s social status declined, so did their relationship, and Lenz eventually grew to resent the highly praised Goethe. Deeply wounded by his rejection from Weimar, the sensitive Lenz responded with the publication of Tantalus, a short verse drama inspired by the Greek myth which barely hides the author’s own identification with the homonymous king. It is roughly two years after this that Büchner’s novella takes place, depicting a period of Lenz’s life fraught with mental illness and several suicide attempts. The work is based upon the diary entries of Jean Frédéric Oberlin, a pastor who unsuccessfully tried to cure the poet’s mental, physical, and spiritual maladies.
    On Lenz’s Tantalus, a unique and ultimately revealing aspect of it is that, unlike the ancient sources which reveal Tantalus’s crime, various and heinous as they are, the German poet does not explicitly reveal any wrongdoing on the part of the Greek king, and instead brings to prominence the description of the his torment and particularly its nature as a mere farce for the Gods’ cruel amusement. The absence of a crime and thus the lack of justification for this supposed punishment insinuates the poet’s intention to appropriate the myth so as to convey his own supposedly unjust fall from his Pantheon in Weimar.
    The dramolet, as Lenz describes it, follows as thus: Mercury and Phœbus laugh condescendingly at the mortal Tantalus as they learn he has fallen in love with Juno. They hide when he finally appears onstage; he is tantalised by an image of the goddess in the cloud, which disappears as soon as he gazes upon it, only to again reappear when he isn’t looking attentively. Cupid then enters and reveals his ultimate fate: nothing that he desires shall ever be conceded.
    Who could admit they have never felt an agony such as the one allegorised by the misfortunes of Tantalus? Whose deepest desires have never been met by life by rejection and cruel derision, as if the Gods themselves wanted to remind one of their impotence? And how slippery indeed the slope to wallow in self-pity is! How easy it is to see Tantalus, chin-deep into a lake of sweet water, looking down, gazing upon his reflection, and finding instead the familiar figure we identify as… ourselves! It is indeed a testament to the everlasting greatness of the Greeks that even today we may find wisdom and solace in their myths. But perhaps we can extract an even greater wisdom from this story by relating it to a work I recently came across by Meister Eckhart.
    On Detachment is a short text proposing detachment as the highest virtue tenable to man, for it is by detaching oneself from all of the joys, sorrows, pains and pleasures of life—a state Eckhart describes as so nearly nothing—that one’s soul becomes more readily opened to the love of God—and thus closed to the rest of the world. Eckhart even raises it above the virtue of humility, stating that humility can exist without detachment, but the same cannot be said of the opposite, and two virtues are always better than one.
    Now, what is not explicitly posited but can be implicitly inferred is that attachment, the opposite of detachment, makes one prone to suffer the woes characterised by the outer—and often unchangeable—circumstances of life. Such a vice is epitomised by our dear Tantalus, who is tortured only inasmuch as he is tormented by his desires—which, it must be reminded, is what brought about his punishment in the first place. In Lenz, we find his castigation in the constant and almost provoking disappearance of the image of his beloved, but only because she is precisely the object of his desire. Tantalus is thus his own prisoner, for he is not free from his most oppressive shackles: his desires, which stem, of course, from his attachments to whatever it is he believes his desires will achieve. Perhaps it is the glory of the seat at the feasts of Mount Olympus or quite simply the acceptance and recognition from the Gods, whom he looks up to.
    At the end of the drama, Cupid warns Tantalus not to reach for anything that does not belong to him—with this in mind, we must ask ourselves what, after all, rightfully belongs to us? Perhaps Tantalus may one day realise that the Gods never owed him anything and that he brought his punishment upon himself. Perhaps he may one day be free from all desire and may embrace the inherent suffering of his life and fate as a path to salvation. Perhaps he may realise that all he truly needs may be found within himself. Perhaps, then, we could imagine Tantalus happy.


    --

    Tantalising Detachment

    O Merriam-Webster assim define o verbo em inglês to tantalise: provocar ou atormentar, como que apresentando algo desejável à vista, mas mantendo-o constantemente fora de alcance. Sua etimologia tem raízes — como todas as coisas boas — na Grécia Antiga: refere-se ao destino cruel reservado a Tântalo, velho rei da Lídia. Para uma descrição detalhada de seu castigo, basta voltarmo-nos aos versos finais do Livro XI da Odisseia:

Vi Tântalo também, num lago imenso
Que o mento lhe banhava, ardendo em sede.
Pois, a apagá-la se perdia o velho,
A água absorta escoando-se, um demônio
Aos pés seco atro lodo lhe mostrava.
Sobre a cabeça corpulentos galhos
Suspendiam-se frutas sazonadas,
Figos doces, romãs, pêras e olivas;
Mas, se o velho faminto ia colhê-las,
O vento as levantava às densas nuvens.*
    (vv.456-465)

    O mito daquele que é talvez o mais sobrecarregado de infortúnios — possível origem, segundo nos diz Platão em seu Crátilo, do próprio nome “Tântalo” — chamou-me a atenção ao ler acerca de Jakob Michael Reinhold Lenz, o poeta esquecido e desafortunado cuja fama hoje repousa mais sobre a novela inacabada escrita a seu respeito por Georg Büchner do que sobre sua própria obra. Permitam-me uma breve explicação. No início da década de 1770, Lenz era um jovem poeta representativo do movimento Sturm und Drang, mas suas tentativas de consolidar uma reputação no círculo intelectual de Weimar terminaram em desgraça — aparentemente, por causa de sua própria natureza caprichosa. Nesse período, era conhecido de Goethe, que, embora ainda em ascensão, já era então uma figura estabelecida na corte de Weimar. Pareciam amigos, mas à medida que a posição social de Lenz se deteriorava, também se deteriorava sua relação com Goethe, e, disto, o jovem acabaria por ressentir-se profundamente. Ferido pela rejeição de Weimar, o sensível Lenz respondeu com a publicação de Tantalus, um pequeno drama em versos inspirado no mito grego, que mal esconde a identificação do próprio autor com o rei homônimo.
    É mais ou menos dois anos após isso que se passa a novela de Büchner, retratando um período da vida de Lenz marcado por doença mental e múltiplas tentativas de suicídio. A obra baseia-se nos diários de Jean Fréderic Oberlin, um pastor que tentou, em vão, curar os males mentais, físicos e espirituais do poeta.
    Em Tantalus, uma característica singular e reveladora é que, ao contrário das fontes antigas que revelam os crimes de Tântalo — variados e hediondos —, o poeta alemão não menciona nenhuma culpa explícita por parte do rei, focando-se antes na descrição do seu tormento e, particularmente, em sua natureza farsesca, montada para divertimento cruel dos deuses. A ausência de culpa, e portanto de justificativa para o castigo, sugere a intenção do poeta de apropriar-se do mito para expressar sua própria queda, que julgava injusta, do Panteão de Weimar.
    O dramolet, como Lenz o descreve, segue assim: Mercúrio e Febo riem com desdém do mortal Tântalo ao descobrirem que ele se apaixonou por Juno. Escondem-se quando o rei finalmente entra em cena; Tântalo é atormentado por uma imagem da deusa nas nuvens, que desaparece tão logo ele a contempla e reaparece sempre que seu olhar se distrai. Cupido então entra e revela seu destino final: nada daquilo que deseja lhe será concedido.
    Quem poderia afirmar que nunca sentiu uma agonia como a alegorizada nos infortúnios de Tântalo? Quem nunca viu seus desejos mais profundos serem rechaçados pela vida com zombaria, como se os próprios deuses quisessem lembrá-lo de sua impotência? E quão tênue é o limiar que nos conduz à autocomiseração! É fácil ver Tântalo, com a água doce até o queixo, olhando para baixo, buscando o próprio reflexo — e encontrando ali uma figura muito familiar: nós mesmos. É, de fato, um testemunho da grandiosidade eterna dos gregos que ainda hoje encontremos sabedoria e consolo em seus mitos. Mas talvez possamos extrair uma sabedoria ainda maior ao relacionar essa história com uma obra que recentemente encontrei de Meister Eckhart.
    On Detachment é um breve texto que propõe o desapego como a mais alta virtude ao alcance do homem, pois é ao desapegar-se de todas as alegrias, dores, prazeres e sofrimentos da vida, em um estado que Eckhart descreve como sendo quase nada, que a alma se abre mais verdadeiramente ao amor de Deus — e, portanto, fecha-se ao mundo. Eckhart eleva o desapego inclusive acima da humildade, afirmando que esta pode existir sem o desapego, mas o contrário não se dá — e duas virtudes, afinal, são melhores que uma.
    O que não é dito explicitamente, mas pode-se inferir, é que o apego, oposto do desapego, torna-nos propensos a sofrer com as contingências externas, frequentemente imutáveis, da vida. Um tal vício é personificado por nosso querido Tântalo, que é torturado apenas na medida em que é atormentado por seus desejos — e seus desejos, vale lembrar, foram justamente a causa de seu castigo. Em Lenz, seu martírio está na constante e quase provocadora desaparição da imagem de sua amada, mas somente porque ela é o objeto de seu desejo. Tântalo é, portanto, prisioneiro de si mesmo, pois não se liberta de suas algemas mais opressoras: seus desejos — que derivam, claro, dos apegos àquilo que ele crê que esses desejos lhe trarão. É possível, afinal, que queira a glória de um assento nas festas do Monte Olimpo, ou, então, simplesmente a aceitação e reconhecimento por parte dos deuses, que ele admira.
    Ao final do drama, Cupido adverte Tântalo a não estender a mão para o que não lhe pertence. E, com isso em mente, devemos perguntar-nos: o que, afinal, realmente pertence a nós? Talvez, Tântalo um dia perceba que os deuses jamais lhe deviam coisa alguma e que ele próprio causou sua punição. Talvez, o rei um dia se liberte de todo desejo e abrace o sofrimento inerente à sua vida e destino como caminho para a salvação. Talvez, ele descubra que tudo de que precisa já está dentro de si próprio. Talvez, então, possamos imaginar Tântalo feliz.

    *No original, o meu amigo dispôs os famosos versos da famosa tradução para o inglês de George Champan. Para fins de claridade, selecionei a tradução de Odorico Mendes.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Georg Trakl: Meu Coração ao Entardecer

 


    Entoando sua típica verve enigmática, carregada, a um só tempo, de timbres frementes e serenos – fato característico de grande parte dos versos expressionistas –, o austríaco Georg Trakl (1887-1914) demonstra-nos que bem sabe dispor as palavras para pintar um mundo indiferente, envelhecido e cansado, mas ainda capaz de revelar ricos resquícios de Beleza.
    Tal como o tênue lampejo da taverna que fulgura ao viajante solitário, Trakl, cálido na vastidão escura, cintila entre a permanência e o abandono. E a linda embriaguez proporcionada pelo vinho na paisagem crepuscular não é apenas física, mas transcendental — culminando, enfim, num gesto de entrega ao doce absurdo da vida. É no beijo do orvalho noturno, afinal, que a existência nos parece suspirar um pouco de poesia.


My Heart at Evening

At nightfall you hear the bat shriek.
Two black horses leap across the meadow.
A red maple rustles.
Along the way a small tavern appears to the traveler.
The young wine and nuts are delicious.
It is splendid to stagger, drunk, through the darkening forest.
Through black branches comes the ringing of grieving bells;
Dew covers your face.

(em Selected Poems of Georg Trakl, trad. de Daniel Simko, p. 39.)

Meu Coração ao Entardecer

Quando cai a noite, tu ouves o morcego.
Negros, dois cavalos saltam pelo gramado.
Sussurra um bordo rubro.
Uma pequena taverna brilha ao andarilho.
Delicioso é o novo vinho, a noz nova é deliciosa
e é maravilhoso cambalear bêbado pelo bosque vespertino!
Entre galhos pretos, ressoam tristes sinos;
o orvalho te beija o rosto.

Emil Nolde: Autumn Evening (1924)


Foto borrada em Viena, capital da Áustria natal de Georg Trakl (7/24)



segunda-feira, 5 de maio de 2025

Mark Fisher: como entender a depressão?



    Mark Fisher (1968-2017), que se suicidou há poucos anos, foi um homem corajoso. Fisher lecionou na prestigiosa Universidade de Londres, ministrou palestras talentosamente provocativas e escreveu preciosíssimas obras sobre a situação de liquidez cultural em nossos tempos – mas nada disto lhe atesta a coragem. O que torna Fisher um homem corajoso é o fato de ele ter conquistado tudo aquilo que conquistou enquanto batalhava contra um incansável demônio interno, sobrevivendo, valente, até os quarenta e oito anos.
    Como podemos entender a depressão? É possível que nunca encontremos uma resposta a essa pergunta. Mesmo assim, sempre haverá quem nos ajude a buscá-la. E, transcorrida mais de uma década das publicações de seus principais textos, nós ainda temos em Fisher uma preciosa fonte de ajuda: pois que provou, por experiência própria, o sabor de sofrer, o pensador nos elucida nosso sofrimento.
    Aprendemos de seus escritos que se, por um lado, cumpre-nos procurar extirpar individualmente as raízes de nossa depressão, não devemos, por outro, esquecer que estamos inseridos em um sistema que se alimenta da dor. Parece que o capital já nos domou o inconsciente coletivo: no coração de nossa sociedade, não fulgura mais a crença em qualquer alternativa real ao neoliberalismo selvagem; os horizontes utópicos se perderam e só nos resta a “submissão fatalista”. É claro que as consequências emocionais são graves.
    Não separemos, portanto, a visão crítica de Fisher de sua própria tristeza, íntima, inexprimível e intransferível. O pensador percebeu que, longe de ser, como a ideologia dominante afirma, uma enfermidade meramente individual, a depressão é, em nossos tempos, um trágico fenômeno coletivo. É por isso que suas palavras nos convidam a converter nosso sofrimento privatizado em raiva politizada. E não são apenas os deprimidos, questionadores e inconformados que se voltam a Fisher, mas todos aqueles que buscam livrar-se de ilusões sobre o estado de coisas no mundo, para, então, assumir o desafio de reconstruir o futuro.


    My depression was always tied up with the conviction that I was literally good for nothing. I spent most of my life up to the age of thirty believing that I would never work. In my twenties I drifted between postgraduate study, periods of unemployment and temporary jobs. In each of these roles, I felt that I didn’t really belong – in postgraduate study, because I was a dilettante who had somehow faked his way through, not a proper scholar; in unemployment, because I wasn’t really unemployed, like those who were honestly seeking work, but a shirker; and in temporary jobs, because I felt I was performing incompetently, and in any case I didn’t really belong in these office or factory jobs, not because I was ‘too good’ for them, but – very much to the contrary – because I was over-educated and useless, taking the job of someone who needed and deserved it more than I did.
    For some time now, one of the most successful tactics of the ruling class has been responsibilisation. Each individual member of the subordinate class is encouraged into feeling that their poverty, lack of opportunities, or unemployment, is their fault and their fault alone. Individuals will blame themselves rather than social structures, which in any case they have been induced into believing do not really exist (they are just excuses, called upon by the weak). We must understand the fatalistic submission of the UK’s population to austerity as the consequence of a deliberately cultivated depression. This depression is manifested in the acceptance that things will get worse (for all but a small elite), that we are lucky to have a job at all (so we shouldn’t expect wages to keep pace with inflation), that we cannot afford the collective provision of the welfare state. Collective depression is the result of the ruling class project of resubordination. For some time now, we have increasingly accepted the idea that we are not the kind of people who can act. This isn’t a failure of will any more than an individual depressed person can ‘snap themselves out of it’ by ‘pulling their socks up’. The rebuilding of class consciousness is a formidable task indeed, one that cannot be achieved by calling upon ready-made solutions – but, in spite of what our collective depression tells us, it can be done. Inventing new forms of political involvement, reviving institutions that have become decadent, converting privatised disaffection into politicised anger: all of this can happen, and when it does, who knows what is possible?
    (em https://theoccupiedtimes.org/?p=12841)

    Depression is endemic. It is the condition most dealt with by the National Health Service, and is afflicting people at increasingly younger ages. The number of students who have some variant of dyslexia is astonishing. It is not an exaggeration to say that being a teenager in late capitalist Britain is now close to being reclassified as a sickness. This pathologization already forecloses any possibility of politicization. By privatizing these problems — treating them as if they were caused only by chemical imbalances in the individual’s neurology and/or by their family background — any question of social systemic causation is ruled out.
    The current ruling ontology denies any possibility of a social causation of mental illness. The chemico-biologization of mental illness is of course strictly commensurate politicization. Considering chemico-biological problem mental has illness enormous with its dean _ individual benefits for capitalism. First, it reinforces Capital’s drive towards atomistic individualization (you are sick because of your brain chemistry). Second, it provides an enormously lucrative market in which multinational pharmaceutical companies can peddle their pharmaceuticals (we can cure you with our SSRIs). It goes without saying that all mental illnesses are neurologically instantiated, but this says nothing about their causation. If it is true, for instance, that depression is constituted by low serotonin levels, what still needs to be explained is why particular individuals have low levels of serotonin. This requires a social and political explanation; and the task of repoliticizing mental illness is an urgent one if the left wants to challenge capitalist realism.

    (em Capitalist Realism, pp. 21 e 37)

    *

    Minha depressão sempre esteve entrelaçada à convicção de que eu, literalmente, não servia para nada. Passei a maior parte da vida, até os trinta anos, acreditando que jamais conseguiria trabalhar. Durante os meus vinte, vaguei entre estudos de pós-graduação, períodos de desemprego e empregos temporários. Em cada uma dessas situações, sentia que não pertencia de fato a lugar algum — nos estudos, porque eu era um diletante que havia enganado o sistema de alguma forma, não um verdadeiro acadêmico; no desemprego, porque não me sentia um desempregado “legítimo”, como aqueles que buscavam trabalho honestamente, e sim um negligente; e, nos empregos temporários, porque acreditava estar desempenhando mal minhas funções e, de qualquer forma, não pertencia àquele ambiente de escritório ou fábrica — não por ser “bom demais” para ele, mas justamente o oposto: porque eu era excessivamente instruído e inútil, ocupando o lugar de alguém que precisava e merecia muito mais do que eu.
    Há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a da responsabilização. Cada indivíduo das classes subordinadas é levado a acreditar que sua pobreza, sua falta de oportunidades ou seu desemprego são culpa sua — e apenas sua. As pessoas passam a culpar a si mesmas, em vez de questionar as estruturas sociais, que, de qualquer forma, foram ensinadas a acreditar que não existem de fato (são apenas desculpas inventadas pelos fracos). Temos de compreender a submissão fatalista da população britânica à austeridade como consequência de uma depressão cuidadosamente cultivada. Essa depressão se expressa na aceitação de que tudo só tende a piorar (para todos, exceto uma pequena elite), na ideia de que devemos nos sentir gratos por termos qualquer emprego (e portanto, não devemos esperar que os salários acompanhem a inflação) e na crença de que não podemos mais arcar com a provisão coletiva do Estado de bem-estar social. Essa depressão coletiva é o fruto de um projeto deliberado de ressubordinação por parte das elites. Há algum tempo, temos aceitado — pouco a pouco — a ideia de que não somos mais um povo capaz de agir. Isso não é um simples fracasso de vontade, assim como uma pessoa deprimida não pode simplesmente “sair dessa” com um gesto de força de vontade. Reconstruir uma consciência de classe é uma tarefa gigantesca, que não se resolverá com soluções prontas — mas, ao contrário do que nossa depressão coletiva nos faz crer, é algo possível. Inventar novas formas de participação política, revitalizar instituições que se tornaram decadentes, transformar o desalento privatizado em fúria politizada: tudo isso pode acontecer – e, quando acontecer, quem sabe o que será possível?

    A depressão é endêmica. É a condição mais tratada pelo Serviço Nacional de Saúde e afeta pessoas cada vez mais jovens. O número de estudantes que apresentam algum tipo de dislexia é surpreendente. Não é exagero dizer que ser adolescente na Grã-Bretanha do capitalismo tardio será logo considerado uma doença. E essa patologização já impede qualquer possibilidade de politização. Se privatizamos esses problemas — tratando-os como se fossem causados apenas por desequilíbrios químicos na neurologia do indivíduo e/ou por seu histórico familiar —, qualquer questionamento sobre uma causa social sistêmica é descartado.
    A ontologia dominante atual nega qualquer possibilidade de causalidade social para as doenças mentais. A quimicobiologização, é claro, está em perfeita sintonia com a despolitização. Considerar a doença mental como um problema quimicobiológico traz enormes benefícios para o capitalismo. Primeiro, reforça o impulso do Capital em direção à individualização atomística (você está doente por causa da química do seu cérebro). Segundo, fornece um mercado extremamente lucrativo no qual empresas farmacêuticas multinacionais podem vender seus medicamentos (nós podemos curar você com nossos ISRSs). É evidente que todas as doenças mentais têm uma base neurológica, mas isso nada diz sobre sua causa. Se for verdade, por exemplo, que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, ainda assim é necessário explicar por que determinados indivíduos têm baixos níveis de serotonina. Isso exige uma explicação social e política; e a tarefa de repolitizar a doença mental é urgente, se a esquerda quiser desafiar o realismo capitalista.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Drummond: Passagem do Ano



     Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) era um homem de temperamento reservado, discreto e meditativo – mas sabia compor versos que, encarando valentemente as agruras da condição humana, celebram a realidade em todas as suas dimensões.
     Ao findar deste emblemático 2024 – ano, por um lado, de memoráveis viagens, amizades novas e muita poesia, e, por outro, da continuação do extermínio de crianças palestinas, destrutivas tragédias climáticas e da reeleição de Donald Trump –, convém que nos lembremos das palavras de nosso poeta-maior: “O último dia do ano/ não é o último dia do tempo.” A vida continuará, e nós – que presente do acaso! – continuaremos com ela. Apesar de tudo, merecemos viver. E merecemos contemplar, como queria Drummond, o alvorecer de renovados tempos.


Passagem do Ano

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com
sinfonia e coral,
que o tempo cará
repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


(n’A Rosa do Povo, de 1945)

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Cinquenta anos sem Nick Drake



     A morte de Nick Drake (1948-1974) completa, neste 25 de novembro de 2024, cinquenta anos.
     Nick Drake foi um dos músicos mais sensíveis que o século passado nos deu. Em suas canções, letras sublimes unem-se a hábeis melodias de violão, formando uma poesia de espécie rara, outonal e profundamente tocante.
     Embora tenha refinado o agudo modelo lírico estabelecido por Jackson C. Frank, Bert Jansch e Bob Dylan, Nick foi quase anônimo em seu tempo: seus três álbuns, Five Leaves Left (1969), Bryter Layter (1971) e Pink Moon (1972), contaram com péssimas vendas e ficaram reduzidos a um grupo bastante restrito de apreciadores – até porque, é preciso ter em mente, o poeta recusava-se a performar shows ou dar entrevistas para divulgá-los. Entre decepções artísticas, crises pessoais e momentos de lancinante tristeza, Nick renunciou à vida aos vinte e seis anos, deixando-nos a lamentar muito o seu cedo falecimento, mas, também, a estimar a Beleza incomparável de sua obra e de seu legado.
     É pena que não posso dizer-lhe o quão imensamente eu o admiro. Como poucos, Nick Drake é um valioso amigo que sempre me oferece luz em tempos escuros.
     A seguir, traduzo alguns trechos da parte final de Nick Drake: The Biography, por Patrick Humphries. Deixo, além disso, links para as suas canções de que mais gosto.


     He was prone to sleepless nights, frequently prowling the house in the small hours. His mother, alert to his movements, would often get up and sit with him in the kitchen until he returned to bed. But that night, when he woke and went down to the kitchen, Molly slept on. No one will ever know what thoughts went through his mind in the long and solitary, dark hours before dawn. Sometime on the morning of Monday 25 November 1974 – probably around 6a.m. – the extra Tryptizol he had taken that night caused his heart to stop beating.
     That Nick Drake died so young is a terrible tragedy; not just because of who he was, but because of what he might have become. The potential of all those years left unlived. He was a man of sincerity, an artist of tremendous calibre and one of the few entitled to be called unique. The fact that there is no film footage of him performing undoubtedly feeds the myth. The photos – and there are few enough even of those – freeze-frame the image of Nick, shy and hesitant before the camera, capturing him for ever in the aspic of immortality: half-smiling at halfremembered memories.
     How Nick’s life would have developed had he lived, is of course the question which continues to fascinate those who have grown to love his music. If he had conquered his depression, would he have wanted to write and record again? Would he ever have felt capable of returning to his former life? Indeed is it possible to imagine a life for Nick which didn’t involve music?
     It is fascinating, but fruitless to speculate. We will never know. Even those closest to him could never know. It seems likely that not even he knew. In the end, though, Nick Drake was born, and died, the way he was. The sadness and introspection gave birth to the music. Had he been less contemplative, it is unlikely that he would have produced such inimitable music. And music was very important to him.
     Any valour and heroism in Nick’s all-too-short life came in the courage of his living. It can be seen in his proud but foolhardy determination to try to beat his illness on his own, and in the will to go back and record even after he had apparently given up hope and retreated to Tanworth. It came in the day-to-day battles with despair, the acceptance of a life unfulfilled and empty, and the continued, weary living of that life.
     But no life worth the name is ever that simple, and even the brief life of Nick Drake abounds with contradictions: the boy who seemed to personify the corrosive effects of loneliness, though he never really left his parents’ home; who found communication such an effort, but reached out so fluently, to so many, through his work. Perhaps in the end facts can only diminish the myth, but ultimately the life is more important. For whatever the truth about Nick Drake’s death, it remains a tragedy – just as his legacy of extraordinary songs remains a triumph, and a joyful one at that.

     –
     Nick era propenso a noites em claro, frequentemente perambulando pela casa durante a madrugada. Muitas vezes, sua mãe, atenta aos seus movimentos do filho, levantava-se e se sentava com ele na cozinha até que ele voltasse para a cama. Mas, naquela noite, quando Nick acordou, ela continuou dormindo.
     Ninguém jamais saberá que pensamentos passaram por sua mente nas longas, solitárias horas de escuridão antes da alvorada. Em algum momento da manhã de segunda-feira, 25 de novembro de 1974, provavelmente por volta das 6h, o Tryptizol extra que Nick havia tomado lhe parou o coração.
     Que Nick Drake tenha morrido tão jovem é uma tragédia terrível – não apenas por quem ele foi, mas por aquilo que ele poderia ter sido, por todo o potencial dos anos não vividos. Nick era alguém de profunda sinceridade, um artista de calibre excepcional e um dos poucos que realmente merecem ser considerados únicos. Certamente, a ausência de qualquer filmagem em que ele se apresente alimenta o mito. As fotografias – e mesmo elas são raras – guardam a imagem de Nick, tímido e hesitante diante da câmera, preservando-o para sempre na moldura imutável da imortalidade: um meio-sorriso evocando memórias meio esquecidas.
     Como a vida de Nick teria sido se ele houvesse sobrevivido é uma questão que continua cativando aqueles que aprenderam a amar sua música. Se tivesse superado a depressão, será que desejaria voltar a compor e gravar? Será que algum dia se sentiria capaz de retornar à sua antiga vida? É possível, afinal, imaginar uma existência para Nick que não estivesse entrelaçada com a música?
     É uma especulação fascinante, mas inútil. Nós nunca saberemos. Aqueles mais íntimos dele não sabiam. Parece que nem sequer o próprio Nick sabia. No fim, porém, Nick Drake nasceu e morreu como ele era. A tristeza e a introspecção deram origem à sua música. Tivesse ele sido menos contemplativo, é improvável que produzisse uma obra musical tão inimitável. E música era algo muito importante para Nick.
     O verdadeiro heroísmo da breve existência de Nick está em sua coragem de existir. Está em sua tolamente orgulhosa determinação de vencer sozinho a doença que o abatia. Está em sua perseverança em retornar a gravar canções mesmo tendo aparentemente desistido de tudo e se refugiado na casa de seus pais, em Tanworth. Está em suas lutas diárias contra a desesperança. Está em aceitar uma vida incompleta e vazia – e, não obstante, em continuar a viver a vida.
     Ainda assim, nenhuma vida que valha a pena é tão simples, e até mesmo a de Nick guarda contradições: o garoto que parecia personificar os efeitos corrosivos da solidão nunca realmente saiu da casa dos pais; o poeta que sentia uma dificuldade tremenda de exercer a comunicação foi capaz de comunicar-se tão fluentemente com tantas pessoas por meio de seus versos. Talvez os fatos possam diminuir o mito, mas, no final das contas, a vida é mais importante. Seja qual for a verdade sobre a morte de Nick Drake, ela continua sendo uma tragédia – assim como o seu legado de músicas extraordinárias continua sendo um triunfo, um triunfo que celebramos com alegria.


     The Thoughts of Mary Jane: https://music.youtube.com/watch?v=XpR_OdvyRNI&si=TP7TuqsDZIroI-_l;
     Fly: https://music.youtube.com/watch?v=aCCn2Mal5mM&si=8wdjbKYR6PiHlf3T;
     Road: https://music.youtube.com/watch?v=jpk32L8Bb4c&si=Ow6EwPOf1PiZL0dR;
     Things Behind the Sun: https://music.youtube.com/watch?v=j14PgxHghjQ&si=gyNDMQPhsjF4X0cP;
     From the Morning: https://music.youtube.com/watch?v=xPe5ZQx0OpQ&si=bY_AYIWF_LAY1J34;
     Rider on the Wheel: https://music.youtube.com/watch?v=54zfEaaHURM&si=Au_WN2fsDChzS0BR (presente em um álbum póstumo, Made To Love Magic, de 2004).


Túmulo do poeta em Tanworth-in-Arden, inscrito com versos de From the Morning

Noite em Londres, cidade que o poeta costumava frequentar (3/24)

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Werner Jaeger: o ideal grego


     O alemão Werner Jaeger (1888-1961) foi um humanista tão arcaico quanto moderno: filólogo dedicado ao estudo dos textos clássicos, Jaeger defendia, em tempos de loucura nazista, que a grandeza do ser humano transcende critérios raciais e reside em sua capacidade de pensar sobre o mundo, de exercer a cultura, de contribuir para a civilização.
     Para o professor, é a alma, e não a etnia, aquilo que une o ocidental do presente ao grego da antiguidade. E é só através do cultivo de valores humanísticos que podemos descobrir, individualmente, os nossos próprios ideais de vida. Esses valores, ensina-nos Jaeger, encontram na antiga Grécia a sua expressão mais completa, refinada e nobre: “Outras nações fizeram deuses, reis, espíritos; só os gregos fizeram homens.”
     A cultura, portanto, vive, flui, altera-se – mas sua essência permanece imutável. Prova disto é o fato de uma Grécia derrotada ter, no fim, vencido: conquistados por Roma, os gregos foram o povo que os romanos mais imitaram. Cumpre-nos seguir o exemplo do humanista que, rejeitando a influência das massas de seu tempo, escolheu ser o indivíduo Werner Jaeger e buscar, por si próprio, um ideal de humanidade.
     A seguir, traduzo alguns breves excertos do início de sua magnum-opus, a indispensável Paideia: The Ideals of Greek Culture, nas palavras em inglês de Gilbert Highet.


     Every nation which has reached a certain stage of development is instinctively impelled to practice education. Education is the process by which a community preserves and transmits its physical and intellectual character. For the individual passes away, but the type remains.
     Greece is in a special category. From the point of view of the present day, the Greeks constitute a fundamental advance on the great peoples of the Orient, a new stage in the development of society. They established an entirely new set of principles for communal life. However highly we may value the artistic, religious, and political achievements of earlier nations, the history of what we can truly call civilization – the deliberate pursuit of an ideal – does not begin until Greece.
     Greece is much more than a mirror to reflect the civilization of today, or a symbol of our rationalistic consciousness of selfhood. The creation of any ideal is surrounded by all the secrecy and wonder of birth; and, with the increasing danger of degrading even the highest by daily use, men who realize the deeper values of the human spirit must turn more and more to the original forms in which it was first embodied, at the dawn of historical memory and creative genius.
     Man is the center of their thought. Their anthropomorphic gods; their concentration of the problem of depicting the human form in sculpture and even in painting; the logical sequence by which their philosophy moved from the problem of the cosmos to the problem of man, in which culminated with Socrates, Plato, and Aristotle; their poetry, whose inexhaustible theme from Homer throughout all the succeeding centuries is man, his destiny, and his gods; and finally their state, which cannot be understood unless viewed as the force which shaped man and man's life – all these are separate rays from one great light. They are the expressions of an anthropocentric attitude to life, which pervades everything felt, made, or thought by the Greeks. Other nations made gods, kings, spirits: the Greeks alone made men.
     But what is the ideal man? It is the universally valid model of humanity which all individuals are bound to imitate. The Greeks who lived at the beginning of the Roman empire were the first to describe the masterpieces of the great age of Greece as 'classical' in the timeless sense – partly as formal patterns for subsequent artists to imitate, partly as ethical models for posterity to follow. At that time, Greek history had become part of the life of the world-wide empire of Rome, the Greeks had ceased to be an independent nation, and the only higher ideal which they could still follow was the preservation and veneration of their own tradition.


     –

     Toda nação que atinge um certo estado de desenvolvimento é instintivamente impelida a praticar a educação. A educação consiste no processo através do qual uma comunidade preserva e transmite o seu carácter físico e intelectual. Porque o indivíduo passa, mas o tipo permanece.
     A Grécia pertence a uma categoria especial. Do ponto de vista atual, os gregos constituem um fundamental avanço em relação aos grandes povos do Oriente – uma nova etapa no desenvolvimento da sociedade. Eles estabeleceram um conjunto inteiramente novo de princípios à vida em comunidade. Por mais que valorizemos as realizações artísticas, religiosas e políticas das nações anteriores, a história daquilo a que podemos verdadeiramente chamar civilização – a busca deliberada de um ideal – não começa antes da Grécia.
     A Grécia é bem mais do que um espelho que reflete a sociedade de hoje ou um símbolo da nossa consciência racionalista do “eu”. A criação de qualquer ideal carrega o segredo e a maravilha do nascimento; e, diante do crescente perigo de a presente cultura de massas degradar até mesmo aquilo que é mais elevado, quem compreende os valores profundos do espírito humano deve voltar-se, cada vez mais, para as formas originais em que esses valores encarnaram-se: na aurora da memória histórica e do gênio criativo.
     O homem é o centro do pensamento grego. Seus deuses antropomórficos; seu engenho de representar a forma humana na escultura e na pintura; sua filosofia, que, em sequência lógica, passou do problema do cosmos para o problema do homem, culminando com Sócrates, Platão e Aristóteles; sua poesia, cujo tema inesgotável, desde Homero ao longo de todos os séculos seguintes, é o homem, o destino do homem e os deuses do homem; e, finalmente, seu Estado, que só pode ser compreendido se visto como a força que moldou o homem e a sua vida – todos estes são raios separados de uma grande luz, são expressões de uma atitude antropocêntrica em relação à vida que permeia tudo aquilo que é sentido, consumado ou pensado pelos gregos. Outras nações fizeram deuses, reis, espíritos; só os gregos fizeram homens.
     Mas o que é o homem ideal? É o modelo de humanidade universalmente válido em que todos os indivíduos devem inspirar-se. Os gregos vivendo no início do Império Romano foram os primeiros a descrever as obras-primas da grande época da Grécia como “clássicas” no sentido atemporal – em parte como padrões formais que os artistas subsequentes deveriam imitar, em parte como modelos éticos que a posteridade deveria seguir. Àquela altura, a história grega havia tornado-se parte da vida do império mundial de Roma, os gregos haviam deixado de ser uma nação independente e o único ideal superior que ainda podiam seguir era a preservação e a veneração da sua própria tradição.


 Erechtheion (Acrópole, Atenas, 9/24)

Andrei Tarkovsky: arte, fé e luz

     Para Andrei Tarkovsky (1932-1986), o indivíduo que se abre com sinceridade à arte experiencia um mistério capaz de mudar-lhe a alma. Pe...