Como podemos entender a depressão? É possível que nunca encontremos uma resposta a essa pergunta. Mesmo assim, sempre haverá quem nos ajude a buscá-la. E, transcorrida mais de uma década das publicações de seus principais textos, nós ainda temos em Fisher uma preciosa fonte de ajuda: pois que provou, por experiência própria, o sabor de sofrer, o pensador nos elucida nosso sofrimento.
Aprendemos de seus escritos que se, por um lado, cumpre-nos procurar extirpar individualmente as raízes de nossa depressão, não devemos, por outro, esquecer que estamos inseridos em um sistema que se alimenta da dor. Parece que o capital já nos domou o inconsciente coletivo: no coração de nossa sociedade, não fulgura mais a crença em qualquer alternativa real ao neoliberalismo selvagem; os horizontes utópicos se perderam e só nos resta a “submissão fatalista”. É claro que as consequências emocionais são graves.
Não separemos, portanto, a visão crítica de Fisher de sua própria tristeza, íntima, inexprimível e intransferível. O pensador percebeu que, longe de ser, como a ideologia dominante afirma, uma enfermidade meramente individual, a depressão é, em nossos tempos, um trágico fenômeno coletivo. É por isso que suas palavras nos convidam a converter nosso sofrimento privatizado em raiva politizada. E não são apenas os deprimidos, questionadores e inconformados que se voltam a Fisher, mas todos aqueles que buscam livrar-se de ilusões sobre o estado de coisas no mundo, para, então, assumir o desafio de reconstruir o futuro.
My depression was always tied up with the conviction that I was literally good for nothing. I spent most of my life up to the age of thirty believing that I would never work. In my twenties I drifted between postgraduate study, periods of unemployment and temporary jobs. In each of these roles, I felt that I didn’t really belong – in postgraduate study, because I was a dilettante who had somehow faked his way through, not a proper scholar; in unemployment, because I wasn’t really unemployed, like those who were honestly seeking work, but a shirker; and in temporary jobs, because I felt I was performing incompetently, and in any case I didn’t really belong in these office or factory jobs, not because I was ‘too good’ for them, but – very much to the contrary – because I was over-educated and useless, taking the job of someone who needed and deserved it more than I did.
For some time now, one of the most successful tactics of the ruling class has been responsibilisation. Each individual member of the subordinate class is encouraged into feeling that their poverty, lack of opportunities, or unemployment, is their fault and their fault alone. Individuals will blame themselves rather than social structures, which in any case they have been induced into believing do not really exist (they are just excuses, called upon by the weak). We must understand the fatalistic submission of the UK’s population to austerity as the consequence of a deliberately cultivated depression. This depression is manifested in the acceptance that things will get worse (for all but a small elite), that we are lucky to have a job at all (so we shouldn’t expect wages to keep pace with inflation), that we cannot afford the collective provision of the welfare state. Collective depression is the result of the ruling class project of resubordination. For some time now, we have increasingly accepted the idea that we are not the kind of people who can act. This isn’t a failure of will any more than an individual depressed person can ‘snap themselves out of it’ by ‘pulling their socks up’. The rebuilding of class consciousness is a formidable task indeed, one that cannot be achieved by calling upon ready-made solutions – but, in spite of what our collective depression tells us, it can be done. Inventing new forms of political involvement, reviving institutions that have become decadent, converting privatised disaffection into politicised anger: all of this can happen, and when it does, who knows what is possible?
(em https://theoccupiedtimes.org/?p=12841)
Depression is endemic. It is the condition most dealt with by the National Health Service, and is afflicting people at increasingly younger ages. The number of students who have some variant of dyslexia is astonishing. It is not an exaggeration to say that being a teenager in late capitalist Britain is now close to being reclassified as a sickness. This pathologization already forecloses any possibility of politicization. By privatizing these problems — treating them as if they were caused only by chemical imbalances in the individual’s neurology and/or by their family background — any question of social systemic causation is ruled out.
The current ruling ontology denies any possibility of a social causation of mental illness. The chemico-biologization of mental illness is of course strictly commensurate politicization. Considering chemico-biological problem mental has illness enormous with its dean _ individual benefits for capitalism. First, it reinforces Capital’s drive towards atomistic individualization (you are sick because of your brain chemistry). Second, it provides an enormously lucrative market in which multinational pharmaceutical companies can peddle their pharmaceuticals (we can cure you with our SSRIs). It goes without saying that all mental illnesses are neurologically instantiated, but this says nothing about their causation. If it is true, for instance, that depression is constituted by low serotonin levels, what still needs to be explained is why particular individuals have low levels of serotonin. This requires a social and political explanation; and the task of repoliticizing mental illness is an urgent one if the left wants to challenge capitalist realism.
(em Capitalist Realism, pp. 21 e 37)
(em https://theoccupiedtimes.org/?p=12841)
Depression is endemic. It is the condition most dealt with by the National Health Service, and is afflicting people at increasingly younger ages. The number of students who have some variant of dyslexia is astonishing. It is not an exaggeration to say that being a teenager in late capitalist Britain is now close to being reclassified as a sickness. This pathologization already forecloses any possibility of politicization. By privatizing these problems — treating them as if they were caused only by chemical imbalances in the individual’s neurology and/or by their family background — any question of social systemic causation is ruled out.
The current ruling ontology denies any possibility of a social causation of mental illness. The chemico-biologization of mental illness is of course strictly commensurate politicization. Considering chemico-biological problem mental has illness enormous with its dean _ individual benefits for capitalism. First, it reinforces Capital’s drive towards atomistic individualization (you are sick because of your brain chemistry). Second, it provides an enormously lucrative market in which multinational pharmaceutical companies can peddle their pharmaceuticals (we can cure you with our SSRIs). It goes without saying that all mental illnesses are neurologically instantiated, but this says nothing about their causation. If it is true, for instance, that depression is constituted by low serotonin levels, what still needs to be explained is why particular individuals have low levels of serotonin. This requires a social and political explanation; and the task of repoliticizing mental illness is an urgent one if the left wants to challenge capitalist realism.
(em Capitalist Realism, pp. 21 e 37)
*
Minha depressão sempre esteve entrelaçada à convicção de que eu, literalmente, não servia para nada. Passei a maior parte da vida, até os trinta anos, acreditando que jamais conseguiria trabalhar. Durante os meus vinte, vaguei entre estudos de pós-graduação, períodos de desemprego e empregos temporários. Em cada uma dessas situações, sentia que não pertencia de fato a lugar algum — nos estudos, porque eu era um diletante que havia enganado o sistema de alguma forma, não um verdadeiro acadêmico; no desemprego, porque não me sentia um desempregado “legítimo”, como aqueles que buscavam trabalho honestamente, e sim um negligente; e, nos empregos temporários, porque acreditava estar desempenhando mal minhas funções e, de qualquer forma, não pertencia àquele ambiente de escritório ou fábrica — não por ser “bom demais” para ele, mas justamente o oposto: porque eu era excessivamente instruído e inútil, ocupando o lugar de alguém que precisava e merecia muito mais do que eu.
Há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a da responsabilização. Cada indivíduo das classes subordinadas é levado a acreditar que sua pobreza, sua falta de oportunidades ou seu desemprego são culpa sua — e apenas sua. As pessoas passam a culpar a si mesmas, em vez de questionar as estruturas sociais, que, de qualquer forma, foram ensinadas a acreditar que não existem de fato (são apenas desculpas inventadas pelos fracos). Temos de compreender a submissão fatalista da população britânica à austeridade como consequência de uma depressão cuidadosamente cultivada. Essa depressão se expressa na aceitação de que tudo só tende a piorar (para todos, exceto uma pequena elite), na ideia de que devemos nos sentir gratos por termos qualquer emprego (e portanto, não devemos esperar que os salários acompanhem a inflação) e na crença de que não podemos mais arcar com a provisão coletiva do Estado de bem-estar social. Essa depressão coletiva é o fruto de um projeto deliberado de ressubordinação por parte das elites. Há algum tempo, temos aceitado — pouco a pouco — a ideia de que não somos mais um povo capaz de agir. Isso não é um simples fracasso de vontade, assim como uma pessoa deprimida não pode simplesmente “sair dessa” com um gesto de força de vontade. Reconstruir uma consciência de classe é uma tarefa gigantesca, que não se resolverá com soluções prontas — mas, ao contrário do que nossa depressão coletiva nos faz crer, é algo possível. Inventar novas formas de participação política, revitalizar instituições que se tornaram decadentes, transformar o desalento privatizado em fúria politizada: tudo isso pode acontecer – e, quando acontecer, quem sabe o que será possível?
A depressão é endêmica. É a condição mais tratada pelo Serviço Nacional de Saúde e afeta pessoas cada vez mais jovens. O número de estudantes que apresentam algum tipo de dislexia é surpreendente. Não é exagero dizer que ser adolescente na Grã-Bretanha do capitalismo tardio será logo considerado uma doença. E essa patologização já impede qualquer possibilidade de politização. Se privatizamos esses problemas — tratando-os como se fossem causados apenas por desequilíbrios químicos na neurologia do indivíduo e/ou por seu histórico familiar —, qualquer questionamento sobre uma causa social sistêmica é descartado.
A ontologia dominante atual nega qualquer possibilidade de causalidade social para as doenças mentais. A quimicobiologização, é claro, está em perfeita sintonia com a despolitização. Considerar a doença mental como um problema quimicobiológico traz enormes benefícios para o capitalismo. Primeiro, reforça o impulso do Capital em direção à individualização atomística (você está doente por causa da química do seu cérebro). Segundo, fornece um mercado extremamente lucrativo no qual empresas farmacêuticas multinacionais podem vender seus medicamentos (nós podemos curar você com nossos ISRSs). É evidente que todas as doenças mentais têm uma base neurológica, mas isso nada diz sobre sua causa. Se for verdade, por exemplo, que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, ainda assim é necessário explicar por que determinados indivíduos têm baixos níveis de serotonina. Isso exige uma explicação social e política; e a tarefa de repolitizar a doença mental é urgente, se a esquerda quiser desafiar o realismo capitalista.