quarta-feira, 24 de maio de 2023

Aquiles, Príamo sombra e luz

 

Priam pleading with Achilles for the body of Hector (Gavin Hamilton, 1723-1798)

    Quando Príamo desce de seus corcéis reais para beijar as mãos assassinas de Aquiles e lhe implorar pelo cadáver do filho, o guerreiro se comove. Príamo perdeu Heitor, Aquiles perdeu Pátroclo e Peleu em breve perderá Aquiles. Incapaz de aplacar sua angústia, o herói vê irmanadas tais agruras: é isso que torna eterno o derradeiro Livro XXIV da Ilíada.
    Aquiles poderia facilmente decapitar o rei da nação hostil, que diante dele se ajoelha; em vez disso, demonstra-lhe respeito. O grego e o troiano se reverenciam, choram juntos, trocam palavras de empatia e, por fim, entreolham-se com admiração – como se Príamo sentisse algo de Heitor no homem que matou tantos de seus filhos queridos e Aquiles enxergasse tinturas de Peleu no pai de seu pior antagonista. 
    A primeira grande obra das letras ocidentais, portanto, presenteia-nos, em seu desfecho, com uma das cenas mais belas de todos os tempos: dois irreconciliáveis inimigos se reconhecem como humanos dignos de apreço e compaixão. Assim, Homero nos ensina que a virtude do guerreiro não se expressa apenas em matanças, e aprendemos que a vida é muito maior do que batalhas.


“Mercúrio se ala; Príamo se apeia,
Deixando fora a Ideu corcéis e mulas
Seguiu direito; achou de Jove o aluno
Dentro sentado, à parte os sócios, menos
Alcimo e Automedon, ramos de Marte,
Que à mesa diligentes o serviam,
Onde satisfizera a sede e a fome.
Não visto passa o corajoso velho,
Até que prosternado, humilde beija
A mão terrível que imolou seus filhos.
Quando por homicídio alguém se exila,
E em país estrangeiro e nobre albergue
Refúgio encontra, espectadores pasmam:
Pasma Aquiles assim, e os circunstantes
Olham-se estupefatos. O Dardânio
Súplice roga: ‘Lembre-te, ó Pelides,
O idoso pai, como eu posto à soleira
Da pesada velhice. Por vizinhos
Talvez opresso, defensor não tenha;
Vivo ao menos te sabe, e folga e espera
Ver tornar cada dia o egrégio filho.
Ai! Gerei tantos bravos na ampla Tróia,
Dos quais eu penso que nenhum me resta.
Cinquenta ao vir o assédio, eram de um leito
Dezenove, os demais de outras mulheres:
Morte nos tem segado quase todos.
O único esteio nosso, pela pátria
A combater, acabas de roubar-mo,
Heitor... Venho remi-lo à frota Argiva
Com magníficos dons. Respeita os numes;
Por teu bom pai, de um velho te apiedes:
Mais infeliz do que ele, estou fazendo
O que nunca mortal fez sobre a terra:
Esta mão beijo que matou meus filhos.’
De Peleu mais saudoso, o herói suspira,
Pega-lhe a destra e brando afasta o velho:
Um de joelhos por Heitor pranteia;
Outro chora seu pai, chora a Pátroclo:
De ambos o soluçar na tenda estruge.
Desafogada em lágrimas a pena,
Ergue-se da cadeira o divo Aquiles,
Por si levanta a Príamo, e o compunge
Branca a régia cabeça e branca a barba:
Ai mísero, sobejo hás padecido!
E a mim que te privei de extremos filhos,
Buscas sozinho? Entranhas tens de ferro.
Senta-te; ao luto agora devemos tréguas.
Viver sempre em tristeza é lote humano:
Existir sem cuidados é dos deuses.
Há dois tonéis ao limiar de Jove
De males e de bens: se misturados
Os derrama o Tonante, o que os recebe
Ora sofre e ora goza; mas, se entorna
Somente males, em penúria o triste
Vaga de pesadume em pesadume,
Dos imortais ludíbrio e dos mundanos.
Assim teve Peleu mil dons celestes,
Brilho, opulência, império e uma deidade
Por consorte; mas Júpiter negou-lhe
Ao trono sucessor, porque imaturo
Devo longe acabar, sem que de arrimo
Lhe seja na velhice, em Tróia estando
Para desgraça dela e teu flagelo.
Também lograste já de quanto abrange
Lesbos ao sul, de Macaris morada,
A Frígia eoa e amplíssimo Helesponto;
Brilhaste, velho, em filhos e riquezas;
Mas, dês que o Céu mandou-te a crua guerra,
Geme Ílio de matança e horror cingida.
A alma em luto perpétuo não consumas;
Com te afligir Heitor não ressuscitas;
Quiçá maiores danos te ameaçam.’
        (...)
Súbito sacrifica branca ovelha:
Esfolam-na, esquartejam-na, e a preceito
Assam de espeto no brasido as postas;
Em canistréis na mesa o pão reparte
Automedon, e Aquiles trincha as carnes.
Às viandas se deitam; e saciados,
Príamo admira o talhe do Pelides
E a divina beleza, admira Aquiles
A facúndia e presença do Dardânio.
        (Ilíada XXIV.369-440 e 503-511.
        Tradução de Odorico Mendes, 1874)


Homero


Miguel de Unamuno: Minha Religião

  Demonstrando, mais uma vez, sua famosa irreverência intelectual, Miguel de Unamuno (1864-1936) expõe, num pequeno ensaio intitulado Mi Rel...